5.06.2016

trilogia do ômi III: comentário sobre o infinito



Um rapaz negro, um homem branco e uma mulher branca de sovacos perfeitamente brancos morreram. O jornal fala do rapaz negro que morreu sugerindo nas entrelinhas que ele mereceu morrer. Em sincera consternação, todavia, pelas outras duas vítimas do mesmo acidente. Um rapaz negro morreu e a televisão fala disso durante um minuto, antes de cortar pros sovacos perfeitamente brancos da atriz branca numa propaganda de perfume caro. Um minuto também. As propagandas de cerveja importada repetem que álcool de qualidade é coisa exclusiva de homens brancos com ternos finos em carros blindados que carregam as atrizes brancas de sovacos perfeitamente brancos no fim do comercial. Um rapaz negro morreu e não vai beber cerveja importada e nem usar o terno fino, o carro importado ou o perfume caro da atriz branca de sovacos perfeitamente brancos. Atores negros surgem esporadicamente, musculosos e simpáticos.

Um rapaz negro nasceu. Nasceu já rapaz, não passou pela infância, adolescência, nem vai chegar à velhice. Um rapaz negro saiu do útero já formado, em seus um metro e setenta de altura raquíticos, matando a própria mãe ao arrancar seu estofo de órgãos junto com o cordão umbilical. O rapaz negro saiu e correu direto pro ponto em que devia morrer, arrastando uma parte da mãe, ciente por instinto de sua durabilidade deteriorada. No caminho ele cruza com garotas negras que gerarão, morrendo no processo, rapazes negros que por sua vez nascerão rapazes e morrerão no mesmo dia. Chega ao seu destino: um carro blindado dirigido por um homem branco de terno fino acompanhado de uma mulher branca de sovacos perfeitamente brancos que o atinge na avenida, pois o motorista perde o controle do carro e, após passar por cima do rapaz negro esmagando sua coluna e seu crânio e espalhando pedaços de cérebro no asfalto desgastado, acerta também um caminhão estacionado provocando uma explosão que incinera as três pessoas envolvidas.

O rapaz negro morreu sem tempo de tomar cerveja importada, ou vê-la, e não teve tempo de se arrepender de ter corrido em direção ao ponto e instante exatos de sua morte em vez de beber cerveja. Seus filhos, todos eles rapazes negros ou garotas negras que por sua vez gerarão outros rapazes e garotas, passarão pelo mesmo círculo porque são rapazes negros condenados a não ter infância ou velhice: um ponto numa linha reta demarca os limites da vida do rapaz, a trajetória do segmento é ínfima. O começo e o fim estão tão próximos quanto o rapaz negro e a mulher negra ficam próximos quando procriam. Seria uma boa memória ou a única, se o rapaz negro tivesse tempo de cultivá-la.

Uma garota negra nasceu. Não conheceu seu pai também rapaz nem sua mãe também garota. Sai do útero com garantia vencida e prontamente concebe uma nova garota negra e um novo rapaz negro. Olha pra trás e vê sua mãe morrendo. Um rapaz negro começa a correr encharcado de sangue arrastando o fio umbilical e o corpo da jovem mãe. Ao contrário do rapaz negro, a garota negra tira um segundo do seu único dia de vida pra chorar um pouco. Um segundo em tempo de inseto é mais do que o suficiente. Ela limpa a lágrima rápida com a mão e já está preparada pro que inarredavelmente sucederá quando o rapaz negro aparecer poucos segundos depois.

O jornal prefere não se estender com histórias. É um veículo que vai direto ao ponto, assim como o veículo do homem branco. Afirma que o rapaz negro morreu como rapazes negros sempre morreram: são rapazes negros. O jornal não explica a morte das garotas negras. O rapaz negro e a garota negra não tiveram tempo de ler o jornal, na verdade nem tiveram tempo para aprender a ler, que todo dia todo mês todo ano é estampado pela mesma manchete apesar da variação de preço. Poderia se afigurar uma importante revelação aos olhos de um homem branco rico atento ao sistema inextricável das coisas. Contudo, a maioria dos homens brancos ricos, eles que nasceram no mesmo dia homens brancos ricos, não liga se estão confinados a uma reta temporal interminável, a um ciclo complexo de paradoxos e doppelgängers. Sabem que os espera em casa um terno fino. Se a televisão estiver certa, o traje chique vai auxiliá-los na prática da conquista das mulheres brancas de sovacos perfeitamente brancos, fora as que eles já têm, irmãs ilícitas, que vão levar na festa assim que elas terminarem o que estão fazendo agora mesmo: dando à luz suas crias incestuosas. Eles não sabem que no universo só existe uma mulher branca de sovacos perfeitamente brancos e que a imortalidade era só uma enganação.




_gabriel resende santos_






imagem: crianças brincando nas ruínas, henri cartier-bresson

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