4.06.2016

trilogia do ômi II: seu adjetivo preferido



O cara legal espera de pé por alguma coisa ou alguém recostado numa árvore bonita em uma tarde de tempo firme. A árvore bonita combina com o cara legal, já que ambas as criaturas são pacíficas, serenas e bem-apessoadas. O cara legal espia seu celular provavelmente em busca de informações sobre o algo ou alguém que vem ao seu encontro.

O cara legal é um pouco ansioso, sem dúvida, como não poderia deixar de ser a alguém que espera sozinho numa tarde de tempo firme sob a folhagem de uma árvore bonita. Nem tanto a ansiedade de sair dali, mas a ansiedade de finalmente deixar a sombra é que ocupa os discretos vazios da mente aflita do cara legal. Resumindo: caras legais não combinam com sombras, sequer aquelas lançadas por árvores bonitas.

O cara legal tem a síndrome da perna inquieta (mas caras legais dificilmente contraem doenças com manifestações físicas aparentes, caras legais não têm doenças autoimunes), ou seja, o cara legal também está um pouco cansado de permanecer parado à espera de alguém ou algo que pode ou não ter alguma utilidade definitiva na sua vida. O cara legal é utilitário, o que aqui tem outro significado. O de que a utilidade tem valor pro cara legal como o estoicismo pro estoico. O cara legal só gosta daquilo que é útil porque o contrário forçosamente não pode ser legal.

Sabe-se que o cara legal gosta de boa música, de bons livros, de vidas boas, boas comidas, boas pessoas, boas mulheres, boas bundas, boa diversão, sabe-se que o cara legal gosta de bons e boas. O cara legal é profundamente bom. Visceralmente bom. O cara legal fica irritado com a espera e tecla algumas palavras talvez impacientes no seu celular. Esperar não é legal.

Uma vez o cara legal esperou por uma garota em circunstâncias parecidas, também recostado numa árvore bonita. O encontro com a garota foi atravessado de piadas legais e elogios legais e autodescrições legais. O cara legal teve ainda mais certeza de que era legal, uma convicção que certamente não o torna menos legal. Se a garota pensou diferente, nós não ouvimos. E o que a garota tem a dizer não é legalmente legal. É apenas um achismo. Um cara legal está acima de opiniões irrefletidas lançadas a esmo por gente desqualificada. Não que a garota seja desqualificada, nós nem sabemos o que ela disse: mas dependendo do que disse, podemos presumir algumas coisas.

O cara legal não lembra da garota. Todavia o cara legal sempre lembra de ser especialmente legal, como naquele dia em que ele contou uma piada muito legal que fez metade dos amigos rir de chorar. Ou apenas chorar, o cara legal sabe causar reações conflitantes. O cara legal tem o dom do discurso, é articulado, o cara legal é um cara capaz. Cara capaz poderia ser o codinome do cara legal.

Imagine uma legião de caras legais e portanto capazes realizando grandes obras e transformações na sociedade. Seria perfeito se não fosse impossível. Caras legais possuem uma falha natural, talvez até um pouco legal no sentido de 'uau que ironia', uma falha bruta porém romântica, que é o pormenor raramente comentado da inaptidão incontornável de reconhecer um ao outro quando se veem. Um cara legal não sabe o que é legal fora de si mesmo, sua ideia do que é legal esbarra na ideia de ser ele mesmo. O cara precede e legitima o legal. Ele é o legal em si mesmo e todo cara legal que conheça filosofia usará estas mesmas palavras para conceber sua defesa, talvez substituindo o legal por 'gênio', 'intelectual' ou 'poderoso'. Penso, logo sou legal. O cara legal que é em particular muito muito legal prefere usar sinônimos intrincados para variar a terminologia do cara legal, evitando reduzi-lo a um recurso de repetição pouco fluído ou a basear seu discurso na exploração de um adjetivo que já é bastante genérico. O cara legal é sui generis.

O cara legal que espera recostado na árvore bonita e ignora a legião de caras legais que o precedem e sucedem olha novamente para o celular e para os lados, tentando identificar o algo ou alguém que se aproxima. O cara legal é ótimo em improvisos, mas sem uma plateia vê-se obrigado a esperar encostado e mudo. A ansiedade do cara legal dobra de tamanho. Ele se pergunta sem visar pontos de interrogação: Será que o cara legal não é suficientemente legal para essa coisa que demora tanto para chegar, será que o cara legal vai ser deixado a sós com a árvore bonita e sua própria natureza legal. Estas dúvidas não são nem um pouco legais, o cara legal reconhece, mas são razoáveis. Afinal, o que significa para um cara legal descobrir que não é legal. Não que a opinião da coisa de que já não temos certeza que se aproxima pese algo nessa balança, mas o cara legal confronta-se a cada segundo com a própria autoestima relativamente não legal. Não dá pra ser legal se você não se considera legal, o cara legal diz pra si mesmo. O cara legal não está contente com esses questionamentos e começa a ficar furioso e curioso com a demora do algo ou do alguém. Será que outro cara legal, mais legal, surgiu pelo caminho. Um cara legal pode ter obstruído outro cara legal, isso legalmente devia ferir o código de ética. Ou não, nada se pode fazer quando um cara legal é mais legal do que outro. É uma competição tácita e todos os caras legais reconhecem-no em sua caçada pelo que é legal no universo. Açoitar o próprio cérebro com dúvidas nada legais é o primeiro passo para a degeneração, o cara legal bem sabe enquanto o impulso de arremessar o celular longe começa a se pronunciar no cantinho recôndito das vontades mais reprimidas do cara legal. Um cara legal não pode ser legal para sempre, não pode ser legal em paz?

Então, de repente, o cara legal olha pra direita, pois seu instinto é olhar para a direita, e descobre exatamente o que queria. Um sorriso estende-se na cara legal. Um sorriso que alguns chamariam solar e outros noturno porque as pessoas fatalmente enxergam as coisas de jeitos muito distintos, afetadas que são por graus de miopia, hipermetropia e astigmatismo. Diremos apenas que era um sorriso legal e que destarte não pode ser julgado por qualquer um que não seja legal.

O cara legal oculta o celular no bolso, sem ocultar o sorriso, e finalmente deixa a sombra da árvore bonita preparado para um abraço ou uma assinatura ou um estrondo ou um beijo ou um bicho. Sombras não combinam com caras legais.



_gabriel resende santos_









Nenhum comentário: