2.29.2016

trilogia do ômi I: nada como uma piada após a outra



É uma peste, com certeza. Parece um bicho, mas é uma peste. Minhas pestes só aparecem de dia. Esse aí não dá nem pra confundir, é uma peste tão óbvia que chego a ter piedade de sua obviedade. Pobre imbecil, nem pra se disfarçar direito, apertar esse passo. Vem andando lenta, torta, trescalando um cheiro horroroso. Pega a arma maria,
já pego joão que isso mais uma peste,
mais um maria não tá fácil,
é não tá fácil mesmo.

Maria me joga a espingarda e eu atiro. No crânio. Aproximo-me pra descobrir o tamanho do monstro. Nossa, essa era uma peste pesada. Devia ser jogador de basquete. Pego uma marreta e quebro o corpo da peste em várias partes. Depois com uma motosserra tiro os pedaços de carne podre e enfio em alguns sacos de lixo reforçados pra mandar rio abaixo. Maria me auxilia no serviço. Tchau peste. Me aparece cada coisa por aqui. Maria mais uma peste,
você tá brincando mais um,
mais um maria mais um,
toma a espingarda.

Toma, peste, toma. Mais um pro saco. Pego uma marreta e quebro o corpo da peste em várias partes. Depois com uma motosserra tiro os pedaços de carne podre e enfio em alguns sacos de lixo reforçados pra mandar rio abaixo. Maria me auxilia no serviço. Tchau peste. Continuam me aparecendo coisas por aqui. Aquele lá não sei se é uma peste mesmo. Tem cara de peste, mas pode não ser. Maria vem cá,
oi joão que é,
aquilo lá é peste,
claro que é,
você tem certeza,
absoluta,
vou atirar hein,
atira ué tá esperando o quê.

Atiro. Caminho temeroso. Maria era uma peste sim, não disse. Maria tinha razão. Uma peste de no máximo um metro e sessenta e cinco. Pego uma marreta e quebro o corpo da peste em várias partes. Depois com uma motosserra tiro os pedaços de carne podre e enfio em alguns sacos de lixo reforçados pra mandar rio abaixo. Maria me auxilia no serviço. Tchau peste. Fico ansioso. Não é uma peste. Mas por que caminha tão lentamente? Anda como as pestes andam. Pesados, cada passo um sacrifício. Fico com medo do que vem lá, melhor chamar Maria. Vem cá maria,
fala joão,
aquilo lá é uma peste,
olha não sei,
não sabe,
pode ser que sim pode ser que não,
e agora,
não sei mesmo nunca fiquei na dúvida,
atiro ou não atiro,
não sei homem,
atiro ou não atiro maria,
você que tem que resolver isso não eu.

Atiro. Com o coração na mão, caminho até a figura estropeada no chão. É uma peste mesmo. Pego uma marreta e quebro o corpo da peste em várias partes. Depois com uma motosserra tiro os pedaços de carne podre e enfio em alguns sacos de lixo reforçados pra mandar rio abaixo. Maria me auxilia no serviço. Tchau peste que nem parecia ser peste. Ouço um burburinho no ouvido direito. Alguém fala de mim? Maria você atira hoje,
eu por que eu,
porque já não sei mais o que é peste e o que não é,
nem eu sei,
olha lá é uma peste ou não é,
claro que é,
então eu já tenho quase certeza que não é,
você tá ficando esclerosado,
 por isso não posso atirar,
eu não vou fazer isso eu nem sei atirar,
eu te ensino você só precisa puxar o gatilho,
ou seja você quer me sujar a consciência se não for uma peste,
ué você é que tem certeza que é uma peste,
não farei isso joão você se vira.

Novamente, atiro no que não acredito que seja uma peste. Chego perto e é uma peste. Pego uma marreta e quebro o corpo da peste em várias partes. Depois com uma motosserra tiro os pedaços de carne podre e enfio em alguns sacos de lixo reforçados pra mandar rio abaixo. Maria me auxilia no serviço. Tchau peste. Leio o bilhete de Maria. Teve que sair pra trazer os suprimentos, logo volta. Devia ter me esperado, é perigoso. É ela que vem lá longe? Não sei. Deve ser, parece uma mulher. Mas vem tão devagar. Maria. Ela não está em casa, é verdade. Entro em casa, pego a arma, saio, aponto. É Maria. É uma peste. Atiro ou não atiro. Se eu não atirar e for uma peste, vou morrer. Há uma distância segura para acertar uma peste. Ele permanece em movimento um tempo depois da morte, ainda que acertemos a cabeça, como a galinha decepada que levou dias (ou seriam semanas? Meses?) para morrer de vez. À espera de um ovo, talvez. Fico em dúvida se atiro ou não atiro. Arrisco minha vida ou a de Maria. E se eu não conseguir matar a peste e ela ficar aqui esperando Maria. Morreremos os dois. Isso não pode acontecer. Sinto um ligeiro estremecimento de medo. Mas também não posso matar Maria. Não posso arriscar. Tenho raiva do escuro. Maria vem chegando mais perto. A peste vem chegando mais perto. Maria. Quem é. É Maria. Maria,
oi joão que cara é essa.

Eu ia reclamar de seu caminhar vagaroso. Reclamar que por motivo de segurança devia se apressar ou acenar quando estivesse vindo, mas atinei que se fizesse isso ela entenderia certamente que eu quase atirei nela, ficaria com medo, fugiria daqui, pra bem longe de mim. Maria é uma mulher mais ressabiada do que parece, é uma sobrevivente. Eu já não sei se me sobrariam forças pra continuar, não sem Maria. Olha achei centenas de sacos pra gente continuar se defendendo da peste,
que ótimo,
você tá calado hoje tá estranho,
não é nada é bobagem minha,
sei bom vamos comer,
sim vamos.

Lá vem o vulto. Atiro. É uma peste. Pego uma marreta e quebro o corpo da peste em várias partes. Depois com uma motosserra tiro os pedaços de carne podre e enfio em alguns sacos de lixo reforçados pra mandar rio abaixo. Maria me auxilia no serviço. Tchau peste.

Atiro. É uma peste. Desta vez acerto as duas pernas. Aproximo-me. Definitivamente é uma peste. “Viva”. Mesmo se arrastando é perigosa. Por isso me mantenho em movimento, rodeando-a. Ela tenta agarrar inutilmente a coisa com sangue mais próxima, ou seja, me agarrar. Me fita com seus olhos cegos, guiada na verdade pelo olfato, o sentido restante. Olho pra trás, Maria me espera com os sacos de lixo reforçados. Eu sorrio, algo que àquela distância ela não deve notar. Volto a olhar a peste. Atiro na sua cabeça, o que não muda nada por um tempo. Continua a se mexer. Espero até que pare. Maria me grita entediada querendo saber o porquê da demora. Fico rodeando a peste enquanto ela faz um esforço patético de perseguição, numa versão lenta e infrutífera de um pique-pega. Permanecemos assim por um tempo, repetindo o mesmo círculo. Até que a peste finalmente desiste. Morre de novo. Uns dez minutos, como eu esperava. Me desculpa, Maria. Coloco a espingarda na boca.



_gabriel resende santos_






imagem: sem título do ensaio "beneath the roses" de gregory crewdson

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