1. Acordar com um intruso na casa. Não daqueles tipos de
intruso com catalogação científica (me poupo do latim), ou o que daria um
ambíguo e excelente poema de sacanagem, mas aquele intruso que não se vê. Nenhuma mitologia o explica. Nada
de parasita no intestino, de mosca sobrevoando os sonhos, de lagartixa na fresta
da porta: o meu intruso é invisível e radical. Invisível porque realmente não
dá pra vê-lo. Nem a olho nu, nem a microscópio. Radical porque me obriga um
silêncio que nem eu e minha boca podiam adivinhar. Se pensou em
angústia existencial, dor de cabeça, dor de cotovelo, desilusão amorosa etc., pensou
errado. Esqueceram de nomear meu intruso, os filósofos nunca tiveram muita
paciência com ele. Só fala em emancipação, vingança, sofrimento e caos, teria
acompanhamento psiquiátrico não fosse um mero intruso de um mero. Não sei nada
de anfitriões e inquilinos, regras de etiqueta me escapam totalmente. Mas toda
noite recebo bem meu intruso, pelo menos. Ele elogia meu jantar, minha
aparência bronzeada e minhas roupas, mas reclama dos meus antecedentes amorosos
e do modo como eu ajeito meus óculos. Não tenho culpa de ser míope, mas o
intruso não entende, critica meu ar grave quando faço isso e diz que me torna
mais arrogante do que já sou. Espertamente aproveito a brecha e sugiro que ele
deixe a casa, se isso o incomoda tanto. Com um sorriso (quer dizer, se você
puder atribuir sorrisos a coisas invisíveis, intangíveis e impassíveis como meu
intruso) ele retorna ao seu canto da casa, aquele que é só dele e nem eu tenho
acesso. Então eu tenho privacidade, longe relativamente do intruso. Até sinto
que dessa vez ele possa ter ido pra sempre, suicidando-se do modo mais discreto
e asseado possível, como se esperaria dele. Mas eu sei que as coisas não são
fáceis e uma hora ou outra ele vai voltar. Precisa voltar e alimentar-se, sim,
como o parasita no intestino. Ou como um vampiro, embora não tenha dentes ou
charme. Durante muito tempo somente pensar nessa convivência às vezes intratável
me afetaria com impulsos aleatórios e autodestrutivos. Pular do segundo andar do prédio ou estapear
a careca de um motoqueiro foram experiências mais ou menos bem sucedidas, por
exemplo. Essa fase já passou, pernas e braços agradecem. Até porque hoje são
compreensíveis os motivos do intruso, por mais que eu continue sem entender por
que eu ou por que assim. Também não compreendo por que o intruso é do jeito que
é, mas aprendi a aceitar sua presença minúscula e os ecos quase mudos que tomo
como sua voz. Sei que não somos amigos, mas sinto algum afeto por ele. Sei que
o contrário é impossível. Virou ritual nas últimas semanas esperar o intruso
trajado da melhor maneira, com as mãos calmas e música boa no aparelho de som.
Até evito mexer demais nos meus óculos quando o assunto está aquele prazer. Sei
que um dia vão levá-lo a sério, e ele terá catalogação científica e gente mais
chique será obrigada a suportá-lo, mas por enquanto fico bem com esse intruso,
aproveitando sua exclusividade incômoda. Agora mesmo espero por ele, com mais paciência
do que eu e meus olhos sabem ser capazes, e noto que a noite está ficando mais
escura. Não preciso ajeitar meus óculos para perceber e agradeço a ela por ser
tão gentil comigo agora.
_gabriel resende santos_
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