3.31.2011

roteiro


Tinha lido em algum lugar que os sonhos fazem mal para o estômago. Deixei de dormir. Enquanto afundei no meu não-sono, faria alguma coisa além de atender as chamadas dos babacas (por que eu fingi que era amigo desse pessoal?) e me entupir de biscoito. Nessas horas os filmes de ação que a TV a cabo transmitia ficavam menos interessantes.

Agentes federais enfrentando os comunas, lutadores de kung-fu recitando provérbios quase bíblicos, pederastas robóticos brincando de faroeste. E eu sem dormir. Imagine se um alienígena totalmente chapado surgisse na janela de casa e me visse. Ficaria sem dormir? O alien ficaria sem dormir? Estava tudo fora de sintonia. Assim como a TV a cabo.

Com medo dos tiros e debaixo da mesinha de canto da sala: passava um faroeste. Preso ali até acabar. O sol árido desses filmes me incentivou  a comprar um ar condicionado. O que fiz em seguida. Não funcionava. A cada filme ambientado nos desertos, sertões, rios de janeiros, entusiasmava-me a ponto de ficar febril.

Preciso de um médico.

Fui. Na fila de espera, minhas olheiras e minha barriga afastavam qualquer espécie humana e não-humana. Eu via com pesar nos olhos aquelas meninas umas mais bonitas que a outras, com seus namorados sarados de cabelo liso, felizes e compensadas, ao passo que... O que eu tinha? Talvez a moça bonita chamada Angela, ou a vizinha anônima e descerebrada que brinca de seduzir, ou talvez ninguém. Como vou saber, se eu sequer sei o que o médico diz: alguma coisa que alguém já veio me sussurrar nos ouvidos, dois dias seguidos.

Três.

Quatro.

Era Dostoiévski me passando receitas?
"Você vai ficar toda esta semana tomando dois comprimidos por dia, um na parte da manhã e outro na da noite. Depois que seguir o tratamento direitinho, pode se matar".

Se eu de fato fosse me matar, como o doutor Dostói previu, era preciso preparar o testamento e me despedir de Angela. Mas ela não me visitava fazia duas semanas. Já suava frio, dedos frios, com medo de morrer sem a despedida. Numa terça à noite ela apareceu.

Pedi desculpas. Motivei a pobre moça a seguir em frente. O consolo clichê dos fins de relacionamento. Ela me olhou cheia de ternura, mais com pena do que com raiva (Goodbye, Jorge). Virou-se e antes de seguir em frente: "Parece que nós sempre gastamos a melhor parte de nosso tempo dizendo adeus". Deus, nunca vou esquecer disso.

Mas esqueci.

Conheci uma garota de cabelo laranja (ou azul?) chamada Clementine. As coisas estão indo bem, mas estou um pouco confuso. Não consigo manter um relacionamento por mais de uma hora e trinta e sete minutos. Talvez seja um problema. E qual é o problema? Qual?

Qual...?

.:gabriel resende santos


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