2.14.2011

você é o que você come


Você é o que você come. Nunca mais esqueci dessa sentença desde que foi a mim pronunciada. A partir desse dia tenho sofrido com a vigilância atenta dos supermercados, sobretudo das caixas e dos outros cidadãos compradores. É com enorme pesar e vergonha que transito pela seção de salgadinhos - Doritos, Ruffles, Pringles, Baconzitos - ou pelos alimentos congelados - lasanhas, pizzas, yakisobas, hot pockets. Entro pelo corredor como se nada, como se tivesse me enganado, como se tivesse me perdido por estar no mundo da lua e, uma vez retomado o foco, era demasiado tarde para retornar, dar meia volta. Caminho devagar, consultando minha lista de compras de comida saudável, fingindo não me importar com os pacotes barulhentos que sinalizam sua presença com um brilho metálico no canto dos meus olhos. Evito as donas de casa, mulheres-mães repressoras naturais da comida-bobagem dos filhos, por isso, se eu avisto alguma delas, evito qualquer contato visual com os aperitivos de sabor artificial idêntico ao natural. Elas entram nesses corredores só por vigilância, só para testar seu olhar de reprovação sobre as contas alheias, só para ver se não encontra o próprio filho colocando a mão em coisas erradas. Uma vez passado o perigo, me esgueiro até a prateleira, saqueio o que pretendo e o escondo na parte baixa do carrinho de compras. Um doce estratagema: escolher esse tipo especial de carrinho, para deixar menos a vista o delito cometido. A parte de cima recheie com tudo o que for integral ou natural: frutas frescas, verduras orgânicas, pão suíço com gergelim, tofus, broto de feijão e alfafa, suco natural de laranja, chá verde, torradas levemente salgadas, geléia de amora, aveia, açúcar mascavo. Dica: sempre compre frutas exóticas para compensar tudo muito bem. Mostre para as pessoas que, apesar de tudo, você tem hábitos refinados. Você é um lord alimentar, tem sangue azul na oralidade. Opte por physalis, blueberry, lichia, nêspera. Obrigue a operadora de caixa ter que perguntar para você o que é aquilo. Se ela se sentir uma burra alimentar será sua glória. Claro que é sempre possível apelar, também, para a ingá, o jambo, a jabuticaba, a fruta do conde. Se quiser, é permitido comprar um pacote de maçãs da Turma da Mônica (provavelmente pensarão que é para o saudável lancheira de colégio do seu filho).

Depois de terminada a compra, chegada ao caixa, evite falar sobre o assunto. Converse com a operadora de caixa porque a simpatia distrai. Outro segredo: misture as baixarias alimentares no meio da comida-natureba, faça cara de pai divorciado, fique com um olhar do tipo 'é para meu filho, ele mora com a mãe e ela nunca deixa ele comer isso, só quero agradá-lo, ela me odeia, a vaca da minha ex-mulher'. Não faça nenhum gesto que o ligue diretamente ao consumo daquelas comidas pré-adolescentes, de jovens com síndrome de Peter Pan, de solteiros solitários comedores de porcaria em fins de noite frente a tv, de entrada-snack de gordinhos. Finja que você repensa se vai levar o produto. Faça contas imaginárias da quantidade de sódio das besteiragens em relação ao valores diários recomendados para consumo. Confira se não tem glutamato monossódico (é cancerígeno, comente em voz alta). Embora o que você coma diga quem você é, não deixe de comprar suas porcarias favoritas para não ser julgado como pertencente ao estilo 'bicho grilo holístico' ou, no pior dos epítetos, 'o cara da meditação com peido de brócolis'. São dicas para se levar para vida toda.

Não se esqueça de outro detalhe. Você é o que você come é uma lei que também se aplica ao mundo do sexo. Se um homem come uma baranga, não é difícil adivinhar o que ele é. Muitas barangas, então, o conjunto da obra responde por tudo. Ou os barangos, no caso das mulheres. Desde que decretaram que é a vagina quem 'come' porque ela engole/abocanha o falo, uma garota também pode, eventualmente, comer barangos e tornar-se aquilo do qual se alimenta. É um canibalismo amoroso, portanto. As leis dos produtos também valem aqui. As/os gostosas/os devem ser experimentadas/os em locais públicos, aos olhos de todo mundo. Quem não pertence a tal espécie deve ser levada/o para casa, em delivery, sorrateiramente e à francesa. Sem que tenha acontecido qualquer contato público. Afinal, você é o que você come.

.: marcio markendorf