Não sei de onde vieram, mas apareceram outras. É sempre assim. É quase impossível descobrir e mesmo pressentir quando ou como. Talvez estivessem dentro de nosso raio. Ou mais longe, maior que um raio ou um quilômetro. Mais distantes do que a vida que posso. Difícil precisar e compreender. Talvez estivessem em nossas malhas, recolhendo nossas coisas, deixando qualquer rastro de ousadia. Ou simplesmente estivessem respeitando as fronteiras do mais forte e entregassem a nós o comando de sua fraqueza. A primeira vez que aconteceu, já não lembro mais. Mas salve a rainha, que faz tudo acontecer. Salve a rainha que nos dá o que comer, pois nos manda buscar. Deixo estar. Faço apenas o que me cabe. Mal sei se devo ensaiar qualquer outro cumprimento. Cumpro meu serviço. Em breve chegará o inverno e nada mais nos será concedido. Exceto as longas noites de vigília e a escuridão dos depósitos subterrâneos. Tempo em que não haverá tantas tarefas a serem cumpridas, pois as criptas já terão tudo aquilo que é nosso ou que nos diz respeito. A rainha nos ordenará a fazer a manutenção das paredes, a organizar as conferências militares e as de engenharia, bem como organizar a distribuição dos alimentos. Mas são as coisas de depois do inverno que me preocupam. Não creio que saibam o quanto me angustia esse devir de espera, de prisão e de falta de luz. Tenho grande apreço pelo sol, gosto de explorar a terra, tenho gosto por ser do mundo. Mas há um medo maior que toma conta de mim: aquela que ocupa a coroa está ficando velha. Haverá disputa pelo trono e sei que incluíram meu nome nos festejos para dentro em breve. Ainda que eu seja o escolhido, ainda que eu seja o mais forte e a medida da realeza esteja comigo e não com os outros, não me deixaram voltar. Eu e todos os outros seremos condenados ao exílio na terra grande e sem lar. Tentarei voltar, eu sei, mas as mulheres impedirão minha entrada. Elas dominarão tudo com sua subversão de gênero e suas capas translúcidas. Ainda poderei ouvir o grito de queda e ascensão que ecoará pelos corredores: ‘a rainha está morta, viva a rainha’. E terei medo da morte e de, também, me tornar um escravo. Então saberei o que é isso, de entregar minha fraqueza ao mais forte, ao desconhecido e ao medo que nos causa a vida.
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.:marcio markendorf
imagem: still de un chien andalou, filme de luis buñuel e salvador dalí (1929).
Um comentário:
texto consistente. Dá para ouvir as outras formigas trabalhando enquanto uma delas, um macho rebelde, conta sua história próximo do tempo real. Vale dizer que foi escrito como desdobramento de um desafio colocar pelo grupo de escritores, a reunião de agosto, na casa da Chris?
Diante do medo que lhe causa a vida, a formiga não fica atônita, narra seu diálogo solitário de quem não se mexe.
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