3.28.2009

cartas em guardanapos


mon bouffon
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volto todos os dias ao mesmo cenário e não me importo de encontrar um cigarro fazendo vez de distração em sua boca nervosa. você não é um boneco de cera que inventei no calor da saudade e eu tenho todo o tempo do mundo ao seu lado (não me engane, sei que essa palidez é maquiagem, não veio de você e sai com água). somos tão reais quanto esse cenário e os diretores no contra-campo. somos reais e não estamos longe. não posso desmanchar a cara blasé, mas acredite, estou feliz de marcar postura nessa conversa sempre suspensa. acho que amanhã servirão peixe. temos o mar às costas e ouvi barulho de barcos nos cais, não poderemos comer porque estragaria a cena, mas teremos peixe à mesa! não foi difícil conseguir esse papel, porque nele coloco tudo o que sou e não me vejo fingindo ser o que não sou. ontem me elogiaram a espontaneidade, peco sempre no figurino, mas disseram que minhas mãos estáticas sobre o quadril expressavam o vigor de dançaria flamenca. acredita? logo eu? façamos como sempre. eu roubo guardanapos e com eles deixo recados sobre a mesa ou debaixo da porta do seu camarim. você lê e se livra deles deixando-os cair entre as madeiras do deck ou simplesmente os engole. não coloque nos bolsos! as trocas de figurino acontecem a qualquer hora e estaremos perdidos se nos descobrem. são tempos difíceis e aqui pelo menos unimos o útil ao agradável, um trocado e boa companhia. sei que de canto de olho você me vê enquanto rememora minhas palavras. não tenho boa escrita, mas sei roubar boas metáforas entre os livros do cenário da biblioteca de monsieur navigateur. como era mesmo aquela do minotauro passando cartas entre biombos? acho que descobri uma brexa na segurança, não existem vigias debaixo do pier, que te parece? hoje não pensei em nada bonito para escrever, mereço descanso e o importante é termos algo em comum para sustentar a espera enquanto não atrapalhamos la grand mise en scène. catei um trecho de um escritor bárbaro que ana iria gostar e se encaixará bem nas análises grafológicas que você tanto gosta. não sei se você já pensou nisso, mas não temos que escolher partido nem ficar em estado neutro. não somos bonecos de cera e seria mais fácil nos desmancharmos a sermos capazes de nos proteger eternamente nessa incomunicabilidade, ainda necessária, mas frágil e pequena diante de tudo que somos e sentimos fora do teatro. e toda essa loucura de se sustentar imóveis sobre as marcas de cena do restaurante, da fábrica, da escola, do licée de l'art, é até divertido porque temos gana de viver e agora topamos tudo. algo em mim marca, coeur silencieux, uma contagem regressiva. acho que no dia que ouvir a sua voz e descobrir o que se esconde por detrás du mystère rouge de ses yeux et sa bouche não me agüentarei de pé, perderei o cachê do dia.
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"minha biografia poderá ser impressa, mas nunca expressa; poderá fazer parte da sua e continuará incompleta; poderá nem ser lembrada. que ao menos seus vestígios criem literatura. a infamia não mudará o que senti. ao olhar suas palavras mudas em vermelho, minha face enrubesceu. un des amours de ma vie est vivant" (jovem escritor de memórias fictícias, outono de ano desconhecido).

.: oberdan piantino
florianópolis, 28 de março de 2009
(18ª das cartas de edward para hopper, proposta literária
baseada no projeto epistolográfico do blog incorrespondências,
de marcio markendorf e nas correspondências de ana cristina césar,
imagem de hopper, "soir bleu", 1914).

Um comentário:

honey disse...

dan:
que alegria coexistir com você neste virtual-real literário. as coincidências nada mais são que a aproximação dos magnetismos pessoais [seus nos meus, meus nos seus, você em mim e vice-versa], que nos impulsionam a compartilhar doçuras, afetos e palavras. obrigada pelas leituras.
bjo,
honey