1.03.2009

carta dupla


cariño,
tenho um único, e primeiro, e desesperado, e fácil, e frágil pedido: devolva-me o valete de espadas, tenho as mãos desarmadas e isso dói. era apenas brincadeira, era apenas diversão, você não tinha porque me roubar um pedaço da única recordação que ainda guardo da infância. esse baralho francês me foi dado de herança, é o último da família. eu sei que foi idéia minha aprender um pouco desse jogo, mas como vencer qualquer partida se falta uma carta da metade que eu acreditava ainda completa?
o baralho de verso azul já havia se perdido a anos e com ele minha esperança de jogo. os reis, as damas e os valetes do baralho de verso vermelho seduziam-se na ausência de seus reflexos do outro lado do espelho, enquanto eu, via-me sem parceiros e oponentes, sem apostas e sem ganhos. então você chegou dizendo saber de um jogo em que minhas cartas se encaixam perfeitamente. de las vegas. de fortunas e prazeres que seriam meus. tudo para pegá-lo sobre a mesa enquanto eu me distraía com você a se olhar na parte côncava de uma colher de açúcar. experimentei o doce para sentir melhor o amargo.
para evitar um novo encontro, para evitar o desgaste de um resgate, tentei substituir a carta ausente por um pedaço de cartão com o desenho de um jovem empunhando a lâmina próxima ao rosto, mas o papel é outro e essa carta-cópia está sempre marcada pela diferença. sua estranheza em meio as outras é gritante e a trêmula figura a lápis se mostra patética como um manco a empurrar cadeiras.
não tenho vício em cartas. jogar não é minha obsessão, eu acho, eu espero. mesmo jogadores inexperientes, com eu e não você, sabem que há momento de embaralhar, momento de distribuir, momento de organizar em leque, momento de guardar algumas na manga e o fatídico momento da primeira jogada. a falta do meu valete de espadas me faz torcer. juego de dados. por um momento anterior a todos esses.
fica combinado assim: você leva a carta naquela mesma lanchonete onde tentou me ensinar a jogar. prometo não chamar a polícia. nós sentamos, disfarçamos o crime com duas xícaras de chá e por baixo da mesa suas mãos me trarão o seqüestrado. você não sairá perdendo, levo-lhe um ás.
acabo de passar a borracha para apagar de vez esse substituto fajuto, mas o que se revela sobre o papel de antigas dúvidas é um valente jovem a equilibrar um coração sobre a mão espalmada. seu corpo é languido como um menino, marcado de vida como um velho. meu baralho de cartas solitárias agora tem nos valetes de copas uma única dupla e não há jogo em que os dois se encaixem.

.: oberdan piantino
(5ª das cartas de edward para hopper, proposta literária
baseada no projeto epistolográfico do blog incorrespondências,
de marcio markendorf e nas correspondências de ana cristina césar,
imagem de edward hopper, "chop suey", 1929).

Um comentário:

marcio markendorf disse...

achei muito deliciosa essa brincadeira que fez com as cartas de papel e as cartas de jogar. fez uso repleto do jogo. em todos os sentidos. fez me lembrar do verso de ana: "as cartas não mentem jamais".
(seriam as previsões apenas ou também as cartas escritas? provocação pura?)