1.01.2009

carta que a água leva


cariño,
acordei náufrago em uma casa abarrotada de gente por todos os lados. não, não me senti sozinho. eu dormira sabendo que ao recolher os colchões, as toalhas e os pratos eu não encontraria neles nem marcas, nem cheiro, nem restos seus. sim, pareço um gerente de pousada e estou feliz com este emprego temporário. tem sido divertido procurar algo de você nas visitas: aqui o mesmo riso tímido acompanhado de um olhar cúmplice, ali o mesmo penteado em perfeito e parcial desequilíbrio, acolá o mesmo comentário mordaz bem sussurrado, por perto o mesmo leve roçar de braços e por vezes a mesma cumplicidade instantânea. a deriva nestas imagens atravessei o ano. não tentei remar, não fiz questão de chegar e nunca estive tão longe do desespero, da ansiedade ou do saudosismo, simplesmente aconteceu: ao atravessar o portão da garagem fui atingido por novos ventos do leste, aqueles ainda puros, sem cheiro de pólvora ou estampidos. perdón, não tive tempo para pensar em nós e isso devo a este oceano de humanidade que me cerca. não é também um oceano o que leva minha carta até você? e que outro motivo me levaria a escrever senão a distância?
assim que eu terminar a carta, e após esboçar outra idéia de gravura, irei levá-la para ser lançada ao mar. abrirei a porta, e após sentar sobre a soleira da entrada, que diferente de seus degraus ainda está fora d'água, buscarei entre as garrafas estacionadas uma com a aerodinâmica perfeita da saudade. a vontade de ser lido me faz pensar em carregá-la a nado até a praia de onde você me escreve no repouso de um lençol de areia, mas há o mito. minha irmã diz que enxerga em mim a fênix, por isso tenho medo de apagar as chamas que arrepiam minha pele se eu vier a mergulhar com muita sede em águas que temo serem profundas. carta que a água leva, carinho que a água traz.

.: oberdan piantino
(4ª das cartas de edward para hopper, proposta literária
baseada no projeto epistolográfico do blog incorrespondências,
de marcio markendorf e nas correspondências de ana cristina césar,
imagem de edward hopper, "rooms by the sea", 1951).

Um comentário:

marcio markendorf disse...

gostei das suas imagens nessa "carta", embora tenha sentido nela mais um tom de conto do que propriamente carta. de novo sua aproximação com o realismo mágico aparece de um modo brilhante. a escolha da imagem também foi sensacional. seleciono o trecho mais lindo, de copiar e guardar no bolso: "assim que eu terminar a carta, e após esboçar outra idéia de gravura, irei levá-la para ser lançada ao mar. abrirei a porta, e após sentar sobre a soleira da entrada, que diferente de seus degraus ainda está fora d'água, buscarei entre as garrafas estacionadas uma com a aerodinâmica perfeita da saudade".