1.05.2009

cartas em mapas


cariño,
os leitores me escrevem cartas. mostram-se indignados, muitas das vezes, com o que chamam de "indefinições", "falta de clareza", e "uso desnecessário de termos não compreendidos pelo grande público". alguns, em surto de censura e clarividência, me acusam de não saber quem sou, de preferir correr riscos a ter a certeza de ser bem compreendido. mas o que sou quando rascunho cartas, senão um escritor a trafegar por palavras? quando pego carona em carros de amigos para voltar a cidade, senão passageiro? quando assisto um filme no cinema da avenida à beira-mar, senão espectador? o que mais poderia ser, se essas são as únicas certezas que posso ter? são pequenos momentos, memórias, imagens que se vão para não atrapalhar as que virão. la fila marcha. marcham as imagens como singelas verdades vestidas de nuvem debaixo de capas pretas.
mas hoje acordei - susto y miedo - de um sonho que me fez pensar em quão delicadas são essas infinitas possibilidades de ser humano: estava ferido no calcanhar e tinha a cama como a única certeza de que não seria o piso meu leito e fim. da ferida jorrava um líquido viscoso. sangre y pus. que banharia toda a cama se algo em mim não houvesse mudado para fazer-me nueva persona. fiz contorcionismos para pegar gaze, esparadrapo e frascos de assepsia, e sobre o colo os organizei. entre dores e desconfortos fiz um curativo. me surpreendeu o fato de que, nesse sonho, fui enfermo e enfermeiro, curador e ferido; fui dois sem deixar de ser um.
assim que acordei fui à nona avenida para buscar o jornal onde sua carta-resposta deveria me esperar. estava em falta. como todos perguntavam a mesma coisa ao atendente da banca, este se resignava a dizer, in the old Smith's alley yet has.
enquanto os ávidos leitores corriam a esmo pelos mais diferentes caminhos, tentei disfarçar minha ignorância quanto a localização do beco desse tal velho Smith, tomando um daqueles mapas que ficam dependurados. nem lembro quanto deixei como pagamento, meus olhos só se preocupavam em destrinchar o mapa.
foi em meio a errâncias oculares que descobri o que querem os leitores quando esperam nas cartas caminhos bem planejados para uma imagem minha - reflexo que olhar nenhum seria capaz de sustentar. querem mapas os leitores, certezas, verdades imutáveis e cartografias seguras: mapas em cartas. só posso oferecer o contrário: cartas em cartas não cartográficas. casi-mapas.

.: oberdan piantino
(6ª das cartas de edward para hopper, proposta literária
baseada no projeto epistolográfico do blog incorrespondências,
de marcio markendorf e nas correspondências de ana cristina césar,
imagem de edward hopper, "new york corner", 1913).

Um comentário:

marcio markendorf disse...

estou sofrendo de completa superação...