12.23.2008

carta não branca


cariño,
continuo em minha imprevisível, e literariamente indefinível, tarefa de copiar sua letra em suas cartas. às vezes o segundo passo, para não dizer carta, é mais difícil que primeiro. eu sei, você já leu isso antes, mas não vindo de mim. ser reflexo, cópia, a outra parte gêmea, papagaio, já não me incomoda, é o que sou quando reconhecem você ao lerem-me em carta. entre caios e anas estão suas cartas, eles estão nelas e as tornam ainda mais belas.
hoje descobri que não me sinto bem quando paro para abastecer o tanque do carro, é estranhamente melhor que isso, é um momento que me obriga a escolher o que fazer com minha trajetória. mesmo nos gestos pequenos, sinto vertigem e algo de um corpo vivo. é nesse momento que penso em voltar e encontrar sua solidão sobre uma poltrona ou de frente a uma lanchonete. lá estaria você pronto a ler o livro de ana que repousa em seu colo. seria isso mesmo ou me lembrei de um quadro?
mas a parada no posto não é solitária. existem outras pessoas no banco de trás e com elas também se repete o jogo do trio. sou a terceira pessoa que ouve sem muito o que compartilhar, que para não ser lido repete o mesmo silêncio de quem dorme de olhos abertos. mas em meio a esse teatro de uma figura estática, já aprendi a criar desculpas para conversas a dois. sim, me agrada a idéia de publicar minha carta anterior. confio totalmente em sua intuição. Por favor, não entenda com isso que estou a lhe dar carta branca. tanto esta, quanto a anterior e as futuras cartas - por deus, o que me faz acreditar em próximas cartas senão uma frágil lâmina de desejo a balançar em um fio de palha? - são cartas rasuradas de engasgos do copista, manchadas de pequenos rascunhos caligráficos e ilustrativos. nada têm de branca.
já terminei meu curso de artes gráficas, por isso tomei a liberdade de fazer um esboço de gravura no canto da folha. nele você é o coelho que constrói a trilha de cenouras enquanto segura um cigarro nos lábios. eu sou o que se equilibra, de óculos tortos, em cima da caixa de fósforo. acho que diminui o ritmo. passos lentos, respiração profunda, não seria esta a confirmação de que estou realmente em férias? de que por mais que não tenha chego ao destino, minha trajetória é meu destino?

.: oberdan piantino
(2ª das cartas de edward para hopper, proposta literária
baseada no projeto epistolográfico do blog incorrespondências,
de marcio markendorf e nas correspondências de ana cristina césar,
imagem de edward hopper, "gas", 1940).

Um comentário:

marcio markendorf disse...

esse curso de caligrafia foi fantástico, sr. copista.