12.19.2008

carta sobre a areia


cariño,
queria poder dizer que você não é real, que não ouve minha voz em meio aos rascunhos que o correio insiste em aceitar como carta. queria fingir que não sou corpo lido no vazio magnético que une as palavras, mas sou invisível apenas para jogos. se escrevo, tenho a pele exposta sobre a folha. aqui é o lugar. agora é o momento. se não há escapatória, por que não me solto da plataforma? queria explicar cada palavra do ontem e do hoje, mas não é função primordial de todo escritor lançar-se ao risco ser mal compreendido? por que tantas perguntas se o que quero dizer é que sua leitura me desafia a pensar em gramática para fingir que não penso em semântica?
respiro para soltar um fio de relato. hoje o papel está mais branco do que de costume. cubo de solidões, cobertor de silêncios, casa vazia. a areia da praia se foi no banho, a visita no ônibus, o dinheiro no mercado, o papel e o lápis ficam. queria que você saísse da cartola para não mais entrar em sua toca. porém o coelho sou eu, não o do travesseiro, não o das fotografias. sou de Alice, o fugidio. se a doninha e o pavão não estavam por perto, você chegou em boa hora para me roubar o relógio de bolso.
um querer ser, não sendo, assim vejo essa paródia intimista. toda semelhança é admiração manifesta. toda frase, sopro necessário. cópia para um leitor que não posso fingir ser simulacro. estávamos a três. era com ela que você falava quando lia para mim. era entre você e ela que oscilava minha atenção. são timbres tão diferentes. se ela fala tão bem, você ouve com ainda mais destreza. eram esses ouvidos que ansiavam meus esboços guardados na manga. ela é tão mais forte do que eu, tão mais sincera. a teria entre as mãos se minha reação já não estive mapeada em signo?
queria entender cada expressão sua para não precisar disfarçar que essas mãos caipiras são esforçadas. espontaneidade? não em uma carta sem selo. definições? não em uma história de fraturas. droga, o não é meu escudo desmedido, o porquê, meu cacoete literário. não, não posso dizer não aos desafios, não quero. as histórias não são desculpas, as desejo muito. é a elas que procuro proteger com o corpo de texto.

.: oberdan piantino
(1ª das cartas de edward para hopper, proposta literária
baseada no projeto epistolográfico do blog incorrespondências,
de marcio markendorf e nas correspondências de ana cristina césar,
imagem de edward hopper, "spends the summer painting with Jo", 1923).

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