__É tarde. A essa hora já não tenho a trajetória do sol para definir o quanto o prédio vizinho se aproximou do nosso. Merda! A única coisa que precisava fazer era ficar olhando exatamente para o apartamento 101 do edifício ao lado e, por causa de um copo d'água - preciso lembrar Sara de deixar a um copo na minha frente e não na geladeira - eu o perdi de vista. Por isso ele e a porra dos seus moradores avançaram em nossa direção. Mas quanto? Às vezes sinto que eles também nos observam do escuro de seus aposentos vazios, principalmente quando está amanhecendo e meu olho ainda não se acostumou com a claridade. Que olhem, tenho a noite toda para ficar em vigília, porque agora é a vez de Sara dormir.
__Costumávamos passar o final da tarde na cozinha, todos os dias. Samanta, ainda vestida com a roupa do jardim, contava com riqueza de detalhes os contos de fada que a professora ensinara e as brincadeiras do recreio - não sem muitas vezes quase derrubar algo enquanto mostrava suas esquivas no pega-pega ou como pulara por cima dos amiguinhos e suas lancheiras. Sara e eu preparávamos a mesa com cuidado para desviar das acrobacias de Samanta e já havíamos aprendido a realizar uma coreografia sincronizada. Pegávamos o leite, a manteiga e a geléia quando Samanta estava próxima da pia. Corríamos para buscar os pratos, as xícaras e os talheres quando vinha para a geladeira. E partíamos para as frutas, o melado e a aveia quando se aproximava dos armários com balcão que ficam embaixo da grande parede envidraçada. E quando se tornava impossível superar Samanta em seu deslocamento, Sara a colocava sentada na mesa, geralmente virada em direção a grande janela, para que pudesse se distrair com nossa vista privilegiada da Beira-Mar.
__Não preciso virar o rosto, tampouco devo, para saber que da posição em que Samanta ficava também é possível ver o maldito apartamento do prédio vizinho. Só agora percebo que ela já os tinha visto antes de Sara e eu. Por isso ficava com a cabeça completamente virada para a janela lateral; por isso, também, o silêncio mudo de seus braços sobre o colo e por isso os pesadelos noturnos e as histórias de pessoas que cresciam e encolhiam, que pensei ser Alice no País das Maravilhas. Samanta não só os tinha visto antes, como já havia descoberto a maneira de frear sua aproximação.
__Nos mudamos para o prédio há 7 meses e desde o primeiro dia coisas estranhas nos alcançaram. Lembro-me do primeiro, quando Sara pensou ter quebrado a janela, e conseqüentemente cortado a garganta. Não atoa a janela lateral. Sua voz demorou a voltar, mas continuou aveludada apesar de guardar uma ponta de medo sutil.
__Penso se Sara não se assustou com algo que viu no prédio ao lado. Imagens de terror indizíveis e alucinantes.
__Já ouço o despertador que acordará Sara para que continuemos o revezamento. Mas, por ironia, quem desperta sou eu, agora com o apartamento vizinho encostado em nossa janela e podendo ver Sara e Samanta do outro lado, esticando os braços para que as acompanhe. Suas mãos geladas me congelam a alma e basta segurar em Samanta para meu corpo ser alçado com extrema leveza.
__Agora, elas são um deles e me levam junto delas.
.: oberdan porto leal piantino, outubro de 2008.
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7 comentários:
Oioi..
adorei seu texto.. muito bom.. têm horas que dá para ver as pessoas em movimento..
adorei mesmo!!!
quero ver se consigo te visitar esse finde, mas não sei .. a coisa tá meio complicada..
beijinhoss!! saudade!
olá, dan, adorei o conto. me lembrou muito julio cortázar, realismo mágico. já leu? acho que iria se deliciar com.
Oi Leticia e Márcio, obrigado pelos comentários. E sim, a questão do movimento coreografado e vigiado é uma idéia fundamental (um pouco constelação de Benjamin e um autor argentino, Lamborghini, em um conto chamado El Fiord. E sim, já li o Bestiário do Cortázar e os autores próximos, Borges, Calvino, até Garcia Marquez são referências fortes.
abraços e até o próximo conto ;]
Dan, pena o conto não ter ido para o livro... muito bom... melhoras e até o lançamento, ou antes =]
Valeu Rodrigo, coisas da vida. É como eu digo, ser escritor é um projeto de vida, é lento e não se resolve de primeira, é escrever sempre e se desafiar cada vez mais, vamos nos falando e incentivando!!!!
Dan!
Oie!
Hhehee
Comentei o seu conto no blog que o Carlos pôs...
Mas não custa reiterar que esreves pacas!!
Beijão!
Paula
Compartilhando o que respondi nos comentário do blog:
http://www.poracaso.com/category/literatura
Respondendo aos comentários, sim, há um “quê” de terror proposital - eu diria “sinistro” nesse caso. Mas ele não busca responder, nem resolver. O que inquieta é o relato de um intervalo do terror, a eminente catástrofe.
É isso, logo publico um outro conto anterior que também segue essa proposta. abraços
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