10.16.2008

O apartamento do prédio ao lado

__É tarde. A essa hora já não tenho a trajetória do sol para definir o quanto o prédio vizinho se aproximou do nosso. Merda! A única coisa que precisava fazer era ficar olhando exatamente para o apartamento 101 do edifício ao lado e, por causa de um copo d'água ­ - preciso lembrar Sara de deixar a um copo na minha frente e não na geladeira - eu o perdi de vista. Por isso ele e a porra dos seus moradores avançaram em nossa direção. Mas quanto? Às vezes sinto que eles também nos observam do escuro de seus aposentos vazios, principalmente quando está amanhecendo e meu olho ainda não se acostumou com a claridade. Que olhem, tenho a noite toda para ficar em vigília, porque agora é a vez de Sara dormir.
__Costumávamos passar o final da tarde na cozinha, todos os dias. Samanta, ainda vestida com a roupa do jardim, contava com riqueza de detalhes os contos de fada que a professora ensinara e as brincadeiras do recreio - não sem muitas vezes quase derrubar algo enquanto mostrava suas esquivas no pega-pega ou como pulara por cima dos amiguinhos e suas lancheiras. Sara e eu preparávamos a mesa com cuidado para desviar das acrobacias de Samanta e já havíamos aprendido a realizar uma coreografia sincronizada. Pegávamos o leite, a manteiga e a geléia quando Samanta estava próxima da pia. Corríamos para buscar os pratos, as xícaras e os talheres quando vinha para a geladeira. E partíamos para as frutas, o melado e a aveia quando se aproximava dos armários com balcão que ficam embaixo da grande parede envidraçada. E quando se tornava impossível superar Samanta em seu deslocamento, Sara a colocava sentada na mesa, geralmente virada em direção a grande janela, para que pudesse se distrair com nossa vista privilegiada da Beira-Mar.
__Não preciso virar o rosto, tampouco devo, para saber que da posição em que Samanta ficava também é possível ver o maldito apartamento do prédio vizinho. Só agora percebo que ela já os tinha visto antes de Sara e eu. Por isso ficava com a cabeça completamente virada para a janela lateral; por isso, também, o silêncio mudo de seus braços sobre o colo e por isso os pesadelos noturnos e as histórias de pessoas que cresciam e encolhiam, que pensei ser Alice no País das Maravilhas. Samanta não só os tinha visto antes, como já havia descoberto a maneira de frear sua aproximação.
__Nos mudamos para o prédio há 7 meses e desde o primeiro dia coisas estranhas nos alcançaram. Lembro-me do primeiro, quando Sara pensou ter quebrado a janela, e conseqüentemente cortado a garganta. Não atoa a janela lateral. Sua voz demorou a voltar, mas continuou aveludada apesar de guardar uma ponta de medo sutil.
__Penso se Sara não se assustou com algo que viu no prédio ao lado. Imagens de terror indizíveis e alucinantes.
__Já ouço o despertador que acordará Sara para que continuemos o revezamento. Mas, por ironia, quem desperta sou eu, agora com o apartamento vizinho encostado em nossa janela e podendo ver Sara e Samanta do outro lado, esticando os braços para que as acompanhe. Suas mãos geladas me congelam a alma e basta segurar em Samanta para meu corpo ser alçado com extrema leveza.
__Agora, elas são um deles e me levam junto delas.

.: oberdan porto leal piantino, outubro de 2008.

7 comentários:

Letícia G.R.D. disse...

Oioi..
adorei seu texto.. muito bom.. têm horas que dá para ver as pessoas em movimento..
adorei mesmo!!!
quero ver se consigo te visitar esse finde, mas não sei .. a coisa tá meio complicada..
beijinhoss!! saudade!

marcio markendorf disse...

olá, dan, adorei o conto. me lembrou muito julio cortázar, realismo mágico. já leu? acho que iria se deliciar com.

Dan Oberdan Piantino disse...

Oi Leticia e Márcio, obrigado pelos comentários. E sim, a questão do movimento coreografado e vigiado é uma idéia fundamental (um pouco constelação de Benjamin e um autor argentino, Lamborghini, em um conto chamado El Fiord. E sim, já li o Bestiário do Cortázar e os autores próximos, Borges, Calvino, até Garcia Marquez são referências fortes.
abraços e até o próximo conto ;]

Rodrigo disse...

Dan, pena o conto não ter ido para o livro... muito bom... melhoras e até o lançamento, ou antes =]

Dan Oberdan Piantino disse...

Valeu Rodrigo, coisas da vida. É como eu digo, ser escritor é um projeto de vida, é lento e não se resolve de primeira, é escrever sempre e se desafiar cada vez mais, vamos nos falando e incentivando!!!!

Unknown disse...

Dan!

Oie!

Hhehee

Comentei o seu conto no blog que o Carlos pôs...

Mas não custa reiterar que esreves pacas!!

Beijão!

Paula

Dan Oberdan Piantino disse...

Compartilhando o que respondi nos comentário do blog:
http://www.poracaso.com/category/literatura

Respondendo aos comentários, sim, há um “quê” de terror proposital - eu diria “sinistro” nesse caso. Mas ele não busca responder, nem resolver. O que inquieta é o relato de um intervalo do terror, a eminente catástrofe.

É isso, logo publico um outro conto anterior que também segue essa proposta. abraços