11.19.2012

rasgue as minhas cartas e não me procure mais


é assim que eu continuo dizendo, embora eu esteja muito anacrônico: quem é que ainda escreve cartas? as olivettis desapareceram das escrivaninhas, viraram peças de museu. até os recados de amor rabiscados não têm aparecido nos guardanapos de bar, nos bilhetes de cabeceira, nos marcadores de livro. estes também viraram artigos de antiquário. fico com medo de, um dia desses, acordar numa dessas lojas, exposto na vitrine.

eu sou tão 1990.

gosto de fotografias de papel, de cartões-postais, de dedicatórias em qualquer presente. isto é: gosto da materialidade dos afetos. não dessa coisa impalpável, virtual. ver fotos no computador ou no aparelho celular, ler torpedos de telefone e mensagens de e-mail? tudo é tão sem vivacidade, tudo tão eletronicamente descartável. eu gosto das coisas materiais, da magia delas e seus simbolismos.

por isso eu sou tão arte rupestre.

acho que é porque eu penso nessa ideia de arte e religião, da magia propiciatória dos desenhos das cavernas. desenhar um bisonte e ferir a imagem do bisonte é uma promessa de destruição, uma boa fortuna vindoura para o caçador. parte desse imaginário ainda persiste em nós: rasgar fotografias é também um rito de destruição simbólico porque é um corte brutal de laços. destruir esta imagem é destruir quem está representado nela. afastar a imagem de nós é afastar a pessoa que vive nela. matando a imagem, ferimos a saudade que temos da imagem. mas isso, para mim, só funciona com a materialidade dos afetos.

eu estou aqui olhando para estas fotos no celular. não tenho coragem de apenas apagá-las. tudo já acabou, mas não consigo simplesmente apertar um botão. fico tentado a torná-las todas imagens impressas só para rasgá-las em múltiplos pedaços. nem um quebra-cabeças teria tantas peças. nem eu teria tanto trabalho. mas é tão somente com esse pequeno ritual que posso seguir em frente de vez. a memória virtual é uma deslealdade, é um campo neutro. o pior são os torpedos. nem dá para pensar em imprimi-los. seria ridículo: um punhado de telegramas descaracterizados. e, então, enquanto não cometo esse pequeno extermínio simbólico, tudo permanece como um nó mal desfeito. é como se eu fosse um cavaleiro caído da sela, preso ao estribo, sem que o cavalo se importe com as ranhuras da minha carne viva (e do meu coração morto).

imagino que já deva ter apagado nossas lembranças. deu delete, reboot, reset, sei lá mais o quê. maldito mundo virtual. maldita imaterialidade dos afetos. hoje é tão fácil só apertar um botão e puff! tudo desaparece. basta limpar a caixa, apagar da memória física. e pior que os donos das memórias mal sabem que estão mais para memória de computador do que memória orgânica. funcionam na base do prompt de comandos, das diretrizes. eu te amo. eu não te amo mais. simples assim. como na época do dos, lá daqueles primeiros computadores, tela verde ou azul ou preta. eita mundo secularizado do capeta. bom mesmo era naquele tempo em que você nunca seria acusado de ser intenso só por ser amor.

então: rasgue as minhas cartas; eu rasgo as tuas fotos. e devolva-me.

.: marcio markendorf






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