4.25.2011

procura-se cachorro perdido

Homenagem aos ufscães

Aquele é um homem curioso. Não saberia dizer a primeira vez que eu o vi, mas tenho certeza de que já nos encontramos aqui, neste mesmo ponto. Já nos cruzamos uma vez e notei qualquer coisa em seu olhar que tinha algo de cumplicidade. Como frequentemente é rápido o movimento das ruas, nem sei se ele chegou a me dizer algo. Também não importa. O que importa é o homem.

Ele tem lá sua pequena obsessão. Caminha pelas ruas em busca de cartazes de animais desaparecidos. Vasculha os postes, os pontos de ônibus, as paredes, os tapumes de obras. Quando encontra um, olha bem para as fotografias, guarda a fisionomia do bicho, o nome, a raça, a cor. Invariavelmente anota os nomes dos donos e os telefones de contato. Para ele não interessam as recompensas em dinheiro, pois o que poderia dar mais prazer a esse sujeito é o gesto de devolver um cachorro desaparecido. Não sabem como lhe dói o coração os cartazes nos quais consta "criança muito doente", sintoma claro de quem é apegada demais ao cãozinho. Quando lê isso, fica tão triste que quase chora e, imagino eu, que seu dia termina de um jeito sombrio e muito penitente. Lembrava de qualquer cão distante que já teve, talvez.

Quando vê cachorros pela rua, com coleira ou sem, fica tão ansioso em perdê-los de vista que começa a chamá-los por todos os nomes dos desaparecidos que recorda: Fifi, Lulu, Roque, Demolidor, Kenzo, Ares, Nemo, Chiclete. Se o cachorro vai desaparecendo, sem dar importância alguma aos chamados, ele apela para o trivial: Totó, Rex, Snoopy, Bidu, Laica, Lessie. Ele só não gosta de chamar animal por nome de homem, porque, em sua opinião, nome de gente é de gente, de bicho é de bicho. Por concluir que o nome precisa fazer valer a personalidade do cão, ficou injuriado quando soube que um vizinho nomeou o cão de "não sei". Nem creio que seja nome de bicho, é mais deboche de adolescente mimado.

Se um cão vem para o lado dele todo serelepe, todo se querendo, logo vê que não é cão perdido coisa nenhuma, e daí não dá muita atenção. Ele busca o cão-burguês, o cão de casa própria. Vira-lata não consta em sua lista de boas ações. Tem até lógica: iria entregá-los a quem? Ele mesmo não tem nem espaço em seu apartamento para cuidá-los. Sua própria casa seria só, por força da circunstância, uma morada provisória até o contato com o dono, caso encontrasse algum. Mas, até hoje, pelo que eu saiba, ainda não satisfez seu desejo.

Talvez ele não saiba que até o cão-burguês, o cão de raça, casa e comida pronta aspira por um pouco de liberdade. Libertação, anarquia, vida mambembe. Ser de todos e de ninguém, morar em todos os lugares e em nenhum. Lutar contra o sentido doméstico de sua natureza e vagar, pela selva de pedra, como um animal selvagem. Há um verdadeiro gozo nisso, a despeito da fome ou do frio que um cão possa sofrer.

Nada parece tão delicioso do que se prostrar no meio da calçada, dormindo, como um imperador, atrapalhando os pedestres e evocando, muitas vezes, aquela inveja do tipo: 'vida boa tem aquele ali, ó, deitado, que não tem preocupação com contas para pagar'. Um cão também é cheio de preocupações, mas quanto àquilo que lhe cabe como um cão. E são muitas, fique sabendo.

Eu, de minha parte, prefiro assim, a viralatice, o ladrar de ataque para as motocicletas, bicicletas e as tobatas. Prefiro a ração e o resto de comida que me trazem, os carinhos múltiplos e de interesse momentâneo. Prefiro o urinar onde quero, sem hora de passeio e cocô embalado no saquinho plástico. Gosto de fazer meu percurso, de deambular sem rumo, sem que me digam 'sou teu dono'. Eu gosto é mesmo deste gosto de ser um cão da multidão. Da próxima vez, quem sabe, eu atenda ao chamado dele, só para ver aonde seu sorriso vai dar.

.: escrito por: marcio markendorf

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