12.15.2010

o ogro



já tinha ouvido falar deles, mas supunha que tivessem desaparecido há muito tempo. a era das fadas, concluíra eu, já havia terminado. eu já me considerava na aposentadoria. no entanto, percebi a inveracidade do meu pensamento quando certa manhã encontrei um deles pelo bairro, perambulando com vira-latas a tiracolo. detive-me com tal paralisia - cheio de compras, contas e contatos de pintores - que poderiam me atirar moedas se os transeuntes me confundissem com uma estátua viva. e eu estava a menos de cinco metros dele. fingi discar um número qualquer no telefone público, olhando para ele sob a guardas dos meus óculos escuros. e era assim ele, o ogro:

registro de áudio do policial fantástico juliano adrian sobre avistamento de ogro: [transcrito]
ele é alto, parece ter entre 30 e 35 anos, cabelos negros, escorridos, de comprimento até a cintura. a pele é cheia de pintas com pelos. anda de modo corcunda, como se carregasse muito peso. suas pernas são ligeiramente dobradas e quando ele caminha parece fazer apenas um movimento estranho, desengonçado, mais do que infantil, do tipo frankenstein que pisa em ovos. possivelmente tem problemas de visão - só consegue observar as coisas virando a cabeça para os lados e projetando o queixo para baixo, em direção ao ombro. aparentemente não consegue focar exatamente a coisa que vê. quando ele olha para os cachorros, ao sinal de doçuras de abanos de rabo, levanta os braços em um ângulo de noventa graus e gesticula com as munhecas de um lado a outro. é possível sinal de retardo mental, característica que, só pode ser, confirma a ogrice. ele se aproxima de meu posto de observação devagar. a essa distância dá para notar que pequenos laguinhos de baba branca se formam no canto da sua boca. seu olhar é injetado, como o de um drogado, as pupilas muito brancas e muito grandes. quando sorri, nos tremeliques com as mãos, percebo que não tem um dos dentes da arcada inferior - na verdade não saberia dizer se perdeu algum ou se é um natural espaço vazio (tenho a impressão que caberia um dedo mindinho nessa abertura, o que poderiam ser dois ou três dentes). ele se aproxima mais, seus braços ficam estendidos ao lado do corpo, sem se movimentar, de modo a parecer ainda mais anti-natural. ninguém na rua o percebe, parece mesmo invisível como deve ser. o ogro passa por mim e do seu corpo se desprende um cheiro de madeira, está impregnado de um cheiro de carvalho ou qualquer coisa assim, muito forte, fato que confirma sua origem. atribuo a ele o registro 3276, tomo b, para o livro de entidades. encerro a gravação para segui-lo até sua moradia e exterminá-lo segundo o código cápsulas-12-benflogin.

.:marcio markendorf
imagem: dados indisponíveis

Nenhum comentário: