8.12.2009

tarrafa genealógica

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um homem que houvesse vivido um único dia, poderia
sem dificuldades passar 100 anos numa prisão.
teria recordações suficientes para não se entediar.
aLBERT cAMUS

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Mesmo que dela só restasse a alça, mesmo vazia, a mochila de Roger não teria qualquer espaço no porta-bagagem reservado ao seu assento no ônibus. Em todas as mudanças... o frete está seis horas a sua frente... a casa alugada em São Francisco, está registrada em fotos enviadas para sua caixa de correio eletrônico, que em tempos de peregrinação não conseguiu acessar... em todas as mudanças, uma carga é impossível deixar para trás: a carga da dúvida.
__Algo, realmente, precisa mudar?
__Tendo pouco mais que a possibilidade de retorno como companheira, ele apenas deixa as coisas como estão, pois tudo lhe parece congelado na falta de espaço para sua mochila.
__As luzes se apagam após a lenta partida do veículo. Ainda que na penumbra, ainda que atônito, o passageiro do assento doze, lote dois do porta-bagagem, briga contra as expressões de indiferença dos outros passageiros. Briga e perde feio pra sonolência do catorze; pras palavras cruzadas do onze; pra conversa animada do dez com o nove; e pro sono leve do quinze.
__Roger cuidou para que suas malas dormissem no bagageiro; para que seus poucos móveis aproveitassem a balada no interior do menor caminhão que já vira na vida; mas não é capaz de perceber a importância do papel de biombo de corredor: seu tronco bloqueia a luz ofuscante que chega de fora, tal e qual uma estátua de beira de estrada pintada por faróis famintos de superfície.
__Como um soldado, desses, só identificado pelo número na placa de metal pendurada na corrente, ele tem em mãos os espólios de doze anos de adaptação, por ironia o mesmo número de seu assento e dos objetos que leva na mochila: 1) tocador de músicas sem bateria; 2) celular, modelo anterior-a-qualquer-vantagem-além-de-não-ser-um-tijolo; 3) capinha da escova de dentes esquecida no banheiro público; 4) óculos de sol; 5) o jornal relido nas quatro horas de espera na abarrotada sala VIP da rodoviária; 6) carteira; 7) cartão do banco; 8) cachecol; e 9, 10, 11, e 12) um total de seis moedas de dez centavos perdidas em um dos cinco bolsos da mochila. E, fora da conta, mas não fora de contexto, as provisões do dia fazendo vez de um pacote entreaberto de salgadinho sabor pizza, como o cheiro não deixa mentir.
__Vinte minutos de viagem se passam. E é a ameaça de colisão com uma senhora de meia idade, cujo gingado deixava claro a necessidade de banheiro, que se converte, enfim, no empurrão necessário a Roger se sentar e, de pronto, se colocar como mais um possível dado das estatísticas: o passageiro número doze se recosta, com doze objetos acumulados em sua mochila sobre o colo, com doze anos perdidos em muitos outros anos que compõem a memória da migração de sua família:
__Tios por parte de mãe que se mudaram após um resultado positivo no concurso público dos correios. Avós que se mudaram após aposentadoria. Primos que passaram na universidade. Tio-avô que tem a casa dos irmãos como apoio para a perda da esposa. Tios que procuravam um lugar seguro pro filho envolvido com drogas. Pais que se animaram com a possibilidade de veraneio o ano todo. Um filho adolescente, na metade do ensino médio, que segue o fluxo, mas não se acostuma com o inverno cercado de água por todos os lados.
__Horas se passam e uma ovelha, um dia branca - dois enegrecida, três avermelhada, quatro dourada, cinco multicolorida, seis prateada, sete translúcida, oito azulada, nove púrpura, dez rósea, onze encardida, doze alvejada - dorme no embalo de contar cada uma das folhas de sua tarrafa genealógica.



.: oberdan piantino
argumento baseado em uma piada de final de jantar,
imagem, capa da trilha sonora de
Drowning by Numbers, de pETER gREENAWAY
vídeo, abertura do filme.

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