2.09.2009

O silêncio de Iokanaan



(A voz de Salomé)

Dá-me tua cabeça, Iokanaan.
Quero fazê-la objeto do meu amor.
Quero-a brilhosa como a superfície branca
E erótica de um ovo.

Quero sentir o gosto secreto de tua boca,
Como o segredo da carne de carneiro
Faz-me adivinhar o gosto salgado do suor.

Quero sentir no seu lábio o sexo selvagem,
Com cheiro forte de pêlo e crina
De cavalo coiceando o vento e violento.

Dá-me tua cabeça, Iokanaan.
Quero-a livre como a sombra de um beija-flor
E impossível como o amor de um eunuco.

Sacia esse desejo viscoso de petróleo, Iokanaan.
Eu peço. Eu imploro.

Quero afundar tua cabeça no meu seio de virgem,
Nas postas vermelhas do meu rosto.
Nos grandes, nos pequenos,
Úmidos lábios.

Quero ser saciada pela tua boca, Iokanaan!

Mas se me recusas como agora,
Prefiro tua morte para a morte do meu desejo.
Pois se existires ainda e me recusares novamente
Verei viver tudo o que não quero: a dor do amor.

Então que desapareça dos meus olhos
O homem que não beijo
O homem que não vejo
O homem que não é.

Meu egoísmo não tem medo da danação.
Que me rasguem os relâmpagos!
Que me devore a carne o fogo!
Que me penetrem fundo as lanças!

Mas que seja meu o que eu quero.

Ah, oferece a mim tua cabeça, Iokanaan.
Mulher mais amada não haverá,
Nem outra mais saciada se apresentará depois.

(A voz de Iokanaan)
[silêncio]

(A voz de Salomé)

Que o teu sangue faça, então,
Nascer da paixão da mulher rejeitada,
A mais abominável prostituta da Babilônia.


.: marcio markendorf,
d'après oscar wilde, "salomé".
imagem de: aubrey beardsley, "the climax" (detalhe), 1893.

Um comentário:

aluah disse...

muito bom. é de vocês?