2.28.2009

carta em pedras


cariño,
sinto que estou quebrando por dentro e isto já não promete ser a cura. é tarde para curas, porque não posso me chamar de doente quando o que sobrou de mim são apenas cascas e feridas. o que resta é a parte não humana, aquela que sobrevive no áspero conforto das palavras, que já não pode viver, porque é humana demais para ser eternamente solitária. sobrevivo em palavras, respiro, transpiro, mas não posso acreditar que vivo. se quero voltar a ser quem era antes, se quero ter uma chance de estar com você, terei que me reinventar. tenho poucos segundos para contar minha história. mais um vento morno e me transformo completamente em pedra.
é preciso se fazer da mesma matéria que reveste as ruas, do mesmo ferro que sustenta as pontes, do mesmo concreto que eleva muros e arranha-céus, para sobreviver nessa cidade de mármore. belo e frio mármore dos condomínios de luxo.
é aos poucos, sem perceber, que deixamos de ver imagens. operários de multinacionais, pedreiros de arranha-céus, vendedores de mercadorias e alimentos nas feiras, agora sou parte da massa que fecha os olhos e já não vê quem ama no fundo da memória, pensa na pessoa amada não vê seu rosto, dorme e seu cariño já não faz parte de seus sonhos. maldição, de certo é a fuligem das chaminés e os resíduos que escapam das construções o que nos pesam o estômago. sei que essa doença está no ar, sinto-a na pele.
você não veio me ajudar. prefiro acreditar que foram extraviadas as cartas
de socorro. nos jornais, fala-se de armazéns incendiados, de terremotos, inundações e guerras, mas pouco importa em quais catástrofes foram destruídas as cartas. você não veio. eu não posso me mexer e você não veio.
seria preciso mover o mundo para chegar a tua boca, porque é tarde, porque nenhum dos lados da guerra quer dar o braço a torcer, porque não posso pensar em amor quando há um mundo para ser reconstruído e corpos atirados nas ruas. seria preciso um encanto, sí cariño! um encanto para transformar pedra em argila. e da argila, humano. e da carne humana, novamente, amante.
hoje parto em direção à nossa praia, primeiro paso de lo encanto. não se pergunte como, também não sei como alguém que tem pés de barro, pernas de granito e tronco de quartzo poderá atravessar o continente e chegar até você, segundo paso. basta que aceite meu querer, preciso ter meu corpo transformado na mágica de dobrar-se sobre o teu, tercero paso. calafrios, aquela batida anormal no peito, aquele fôlego que parece ser o último, o que mais quero é sentir que vivo no risco de morrer de cariños
.
ainda que tenha a paciência como aliada, pois ao menos ela ainda mora em mim, meu único medo é achegar-me à margem e descobrir como as estátuas olham o mar quando solitárias. sin usted yo no me salvo. então, quando estiverem meus sedimentos aparentemente conformados na superfície dessa solidão sem nome, pela ajuda do vento ou da maré, me jogarei ao mar da forma que for possível. sei que se romperão em pequenas pedras atiradas em mergulho, as fissuras que tanto rangem e doem. como dói, cariño. restará o sonho de sentir que, num dia qualquer, você atravessará a baía sobre meus pedaços adormecidos. puente sobre aguas tranquilas. durante a caminhada, irá reconhecer minha letra. inscritas sobre as pedras estarão todas as cartas que escrevi para você.

.: oberdan piantino
(8ª das cartas de edward para hopper, proposta literária
baseada no projeto epistolográfico do blog incorrespondências,
de marcio markendorf e nas correspondências de ana cristina césar,
imagem de edward hopper, "gloucester harbor", 1926).

Um comentário:

branca disse...

o que me resta como solução.
me transformar em pedra. catar esse desumano que é o que resta de mim e torná-lo um pedaço de concreto qualquer, uma obra-prima do desespero e da dor. totem de um povo mal-amado e solitário.