12.07.2008

nesse mesmo hemisfério

__Me lembro como se fosse hoje: minha mãe carregava Joana no colo enquanto esperávamos na fila. Mas toda espera se transformou em esquecimento, a fila não andava. Talvez buscássemos comida após mais uma enchente. A barragem arrebentara, diziam os adultos entre si. Era lama o que sentia nos pés? Provavelmente éramos os únicos sobreviventes da família. Estava Joana viva enquanto ela lhe dava o peito? De uma coisa estou certo: após três dias na fila, o gosto podre da comida é minha memória menos nítida, menos forte, menos consistente.
__Dormíamos nas intermináveis filas de banho, comida ou atendimento médico. O triste era não ter uma fila para subir em camas, dormiria nessa também se fosse preciso.
__Meu número de atendimento era 439057391. Minha área de abrangência, o Bairro do Capim de baixo. Por Deus, que número eu calçava?
__Minhas memórias agora são o circo de latinhas que montei na fila do banho antes da invasão dos criadores de porcos e suas espingardas.
__Não corri até ter todas as latinhas entre os braços. Posso contá-las, cada uma das latinhas com suas rebarbas afiadas, pelas cicatrizes que carrego no antebraço. Eram oito.
__Fui seguido por um homem de espingarda durante cinco quarteirões. Era engraçado o barulho que as latinhas faziam. Foi na terceira vez em que me ordenou que parasse que ouvi o tiro. Mais que rápido deslizei para debaixo de uma caminhonete. Assim perdi metade do hemisfério direito. Pudi senti-lo quente debaixo da carroceria fria do veículo.

.: oberdan porto leal piantino

Um comentário:

marcio markendorf disse...

nossa, dan, o começo do texto estava fantástico. foi guiando para uma vontade de ler e saber mais, então acaba. por que não desenvolve um pouco mais a história? vai ficar mais incrível ainda. abração.