9.30.2018

as amarelas flores de setembro

caro doutor tedo,

o que o senhor acha que eu posso fazer com isso, com essa sensação estranha de ser um impostor? parece que, em algum ponto indeterminado do tempo, fui substituído por versão pior de mim, emburrecida e lobotomizada. já não consigo mais me concentrar como antes no trabalho - dobro e desdobro o olho  sobre a mesma página. leio inventando palavras, trocando as coisas de lugar, suprimindo passagens, feito um sonho mecânico terrível. quando desconfio que a frase não tem sentido, releio e percebo que me perdi pelas ruas das frases, entrando em becos e seguindo na contramão. fico com a impressão de que fui acometido por um tipo novo de dislexia, de baralhamento das ideias, algo que se rende também nas falas: a língua tropeça na boca, se retorce, gagueja e perde-se no que dizia. sem contar que é um esforço imenso para me concentrar e não me dispersar, pois como um coelho elétrico, salto de um ponto a outro, constantemente. antes desse evento que me acomete, eu ouvia música enquanto trabalhava, sem maiores implicações, mas hoje até os pássaros lá fora me incomodam, me deixam irritado, distraído, profundamente distraído. traído pelo descanso, nem sei dizer qual foi a última noite de sono decente que eu tive - tenho sido atingido pela insônia ou pelo sono intermitente há muitas e muitas noites. piora se antes de me deitar eu fico lendo trabalhos de alunos, a cabeça no travesseiro não para de intervir, o sonho vira uma oficina do diabo. pela manhã, ainda cansado, fico lutando para me manter acordado e atento e interessado nas coisas do mundo. na sala de aula, visto a fantasia cordial e do bom professor, tento me apresentar na melhor forma, como se nada. e por dentro: eu me sentindo burro, estúpido, incoerente, insuficiente. fico sempre pensando que eles poderiam ter um mestre mais interessante, ou que minhas aulas fossem radicalmente mais intelectuais, ou que eu dissesse coisas que produzissem impacto. e eu só sinto que estou indo, às cegas, como um tronco de enchente, chocando-se aqui ou ali, desgovernado. cansei de voltar para casa dando aulas na mente - fico zangado comigo mesmo por não ter dito isso ou aquilo, por ter me esquecido de tal livro ou de não fazer tal relação. se eu dou quatro horas de aula em sala, dou outras quatro para mim mesmo, como penitência por ter sido tão medíocre. as coisas pioram quando tenho notícias de meus colegas, pois todos parecem saber muito desenvoltos sobre o que dizem. eu, do outro lado, sinto que estou de fora, que sou uma fraude bem armada, então tenho medo de dizer qualquer coisa, me recolho em minha casa pequena por receio da humilhação pública. é como naqueles sonhos em que você, de repente, descobre que está nu no meio de uma festa de gala, todos olhando para você e rindo, rindo muito, mas com certa classe e altivez. por sorte, a vontade de saltar de prédios e na frente dos carros já passou (embora ainda seja tempo das amarelas flores de setembro). o problema é que esse desejo foi substituído pela procissão solene dos pensamentos trágicos e absurdos. fico vendo a imagem: do meu apartamento em chamas, as labaredas saindo pela sacada, destruindo tudo; da minha cachorra morta no hall de entrada, depois de ter pulado do quinto andar; do meu namorado morto em casa porque eu levei a chave que estava na porta e ele não encontrou nenhuma das duas outras cópias, não tendo tempo para fugir de um vazamento de gás. mas claro que não posso dizer nada disso a ninguém, pois não entenderiam, iam pensar que surtei, que sou um perigo se não estiver devidamente controlado por medicamentos. mas pelo contrário: nunca pensei em fazer o mal de verdade, exceto a mim mesmo. não posso negar, no entanto, que tive dias sombrios, fantasiando violências em resposta à vontade de matar e de destruir. tudo acontecia dentro do silêncio daquela timidez circunspecta, de canto de sala olhando o mundo e enterrando-o. e se não bastasse as coisas que sofro, são meus pais que me ligam para reclamar do meu irmão, são meus amigos que aparecem para reclamar do ex, são meus colegas que se reúnem para reclamar do trabalho, sempre pedindo conselhos e conselhos como se eu fosse uma cornucópia da auto-ajuda. será que eles nunca se deram conta de que em momento algum eu reclamei sobre alguma coisa, que eu também poderia ter algo que me incomoda, mas que ninguém prestou atenção ou quis ouvir? possível que seja por isso que eles sempre me peçam ajuda, uma vez que parece que sempre estou salvo do mundo. a verdade, doutor, é que todos os dias é essa mesma batalha interior, algo que culmina com o carneamento do leão, o cotidiano cheio de sangue. amanhã começa tudo de novo, a distração, os pensamentos, a síndrome do impostor. o que importa é que ainda estou vivo. por quanto tempo não sei, tenho esperanças, apesar de tudo. por isso é que eu bem quero que o senhor me responda o que é que eu posso fazer com isso? responda asap.

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