11.25.2011

o colecionador de memórias


As memórias não estão completas. Há sempre uma trajetória entre o ponto A e o ponto B que escapa. As linhas que os unem desapareceram, o passado sucumbiu com elas. Então como recuperar o que não já é mais uma sequência temporal coerente? Retas ou curvas, as linhas não fazem mais que uma ausência silenciosa e perturbadora. E ao faltar o objeto, falta-me a calma, instala-se o ciúme. Colocar em ordem as histórias de vida é um projeto de posse, de fundar impérios com base em uma satisfação fetichista. Perder um objeto ao longo do caminho é, pois, um modo de fragmentar-se enquanto colecionador. Ao escapar-me o objeto de paixão, também eu permaneço ignorado. Ou ignorante. Encontrar ao Outro é encontrar-se a Si Mesmo.

Talvez a esperança de reaver as peças que faltam, estabelecendo a sucessão ininterrupta, mantenha-me sempre alerta ao desejo de continuar. Quero devorar, quero me satisfazer com a intimidade de uma série completa. Perder um dos fios da memória significa enredar-me em uma trama na qual um supõe a existência dos outros. Um só elemento perdido é a causa da frustração do todo.

Para não provocar a decadência prematura desse reino sublime, desenrolo a ilusão sobre as lacunas, tentando pavimentar com detalhes inventados as partes imperfeitas. Tomo emprestada a ficção para que ela dê conta do fato perdido, do objeto postergado. Assumo provisoriamente o biografema de Barthes, penetro no campo do gozo dos resíduos signícos. Faço isso só por me aliviar, mas não me satisfaço com plenitude. Barthes pode se interessar pelos fragmentos aleatórios, mas eu, de outra sorte, só quero colecionar memórias que sejam inteiras:

Sylvia Plath, Ian Curtis, Federico Garcia Lorca, Salvador Dali, Truman Capote, Camille Claudel, Jean-Michel Basquiat, Edvard Münch, Gustav Klimt, Michelangelo Caravaggio, Jackson Pollock, Maria Callas, Wolfgang Amadeus Mozart e tantos outros ainda subordinados ao meu desconhecimento.

Assisti a cinebiografias. Li biografias. Delas recolho os detalhes trágicos como quem reúne artefatos em um relicário. São como delicados haicais, formas inteiramente belas e intensamente patéticas. “Adeus, amigos, irei para glória”, diz Isadora Duncan, ao entrar em seu carro esporte, para depois, acidentalmente, ser estrangulada pela echarpe. E: “Espero que minha partida seja feliz, e espero nunca mais regressar”, registra Frida Kahlo em página de diário, antes do que seria sua tentativa de suicídio bem-sucedida. Ou o triste Van Gogh, agonizando no leito de morte, depois do tiro auto-infligido, que sussurra ao irmão Theo: “O sofrimento não terminará jamais”. Ou ainda: Álvares de Azevedo, o senhor absoluto das palavras de antes do suspiro: “Fatalidade, meu pai”. E uma inquietância: Pablo Picasso chamando por Modigliani antes de expirar, como previra muito antes a esposa suicida do italiano.

Alinho os objetos biográficos em uma fileira, catalografo os itens, traço as linhas do tempo, monto os quadros de humor, crio a constelação dos afetos. E algo sempre me escapa e me afeta. Chego a desconfiar que o biógrafo seja um álibi da perda, adiando uma posse definitiva.

Tudo porque considero que assumir a propriedade privada dos outros é minha função. Depois: arranjar, classificar, manipular. Ao empreender apaixonado projeto, coleciono histórias de vida e narrativas de morte. Abstraio das narrativas biográficas sua função verdadeira – se ainda posso referir-me verdadeiramente ao real como algo palpável ou funcional. Não quero pedagogias nem edificações. Um objeto da coleção é para ser apreciado como a um troféu. Nada se aprende com ele porque o que importa é apreender.

Assumo como possível o parecer de Coleridge: a vida de qualquer um, se contada com veracidade, oferece interesse. Acrescento ao pensamento: completude. Não basta uma vida de peripécias e sofrimentos, não basta o senso comum afirmar ‘minha vida daria um romance’. É preciso compor com sutilidade o quebra-cabeça de um sem-número de elementos. O interesse pelo artefato fragmentado se dá apenas quando nele está guardada uma potência totalizadora. É justamente por isso que sou cativo de quem morre, de quem encontrou o absoluto, fechando a jornada. Assim é mais fácil recolher os pedaços, construir os limites do edifício e museificar para permanecer.

O colecionador é aquele que impede o desaparecimento da memória-objeto e que, por puro crime passional, poderia destruir a repetição do mesmo para ter apenas para si o objeto raro e original. O colecionador biográfico, pois, acumula outra função: é um restaurador de auras – das almas dos que já se foram (e não voltam mais).

.: marcio markendorf
.: imagem de: a memória, rené magritte, 1948.

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