12.10.2009

corça


ela tinha orelhas de abano. enormes. sorte que o cabelo escondia, sorte que mudou o corte de cabelo para esconder as orelhas. caso não fosse assim, seria uma corça no meio do mato, as orelhinhas em pé ao menor som estranho. ela era feia, mas vestia-se com apuro, de um modo que parecia bonita. um dia discutimos por coisa boba. de raiva, por pura maldade, gritei bem alto – ‘cala boca, maria orelhinha’ – e fiz com as mãos duas conchas nos ouvidos só para evocar a imagem de dumbo, o elefantinho. vi os olhos dela injetados de ódio, vi a pele tremer, o pé tremer, tremer o apartamento. tive que me segurar para não cair no chão com o terremoto que minha maldade provocara. ela entrou no quarto batendo a porta. passou dois dias enfiada no cômodo, em silêncio. talvez três dias. não a vi sair por nada. para ir ao banheiro, para beber água, comer. nada. comecei a temer o pior, só não tinha coragem de enfrentar o que fosse. sabia que estava viva, pois volta ou outra ouvia um som, um arrumar de cama, um derrubar alguma coisa no chão. comecei a não dormir. eu acho que há um mês ela não saía do quarto. quem sabe, três. quando dei por mim, há um ano não a via mais. então eu não dormia direito, rangia os dentes todas as noites, acordava de madrugada, passava o dia no trabalho insone, vegetando, pescando um mar de peixes pesados. tinha pesadelos: sonhava com orelhas enormes me atacando; orelhas de salto alto; orelhas de peruca; orelhas de fuzil e farda. há dez anos eu via aquela porta fechada, aquele silêncio, aquela culpa projetando uma sombra gigantesca pelo chão. hoje, preciso dizer, preciso que todos saibam: há dez anos e um dia eu sou uma orelha.

.:marcio markendorf

imagem: óbvia  humor: terrível   saco: zero.

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