11.15.2009

os mortos prováveis


é bem provável que estejam mortos. provável, também, que isso seja apenas um desejo meu. uma fantasia, um sonho. folheei rapidamente os cadernos policiais à procura de notícias. há dois dias não voltam. não que eu esteja preocupado. por dois dias tive a casa apenas para mim, o que me parece um alívio. ao menor som de retorno, o portão abrindo, os passos na escada, aquela risada forçada, eu cerceava minha liberdade de novo no quarto, talvez como se eu mesmo não houvesse saído dali por dois dias. se o alarme era falso, deixava outra vez a porta aberta, o vento e o corredor apenas para mim. o ar pesado quando estão em casa é de sufocar, por isso é melhor arejar os cômodos o quanto puder antes que voltem. se voltarem. é bem provável e possível que estejam mortos. bem provável que eu queira que estejam. imagino os corpos esmagados, o ferro retorcido, a última convulsão. precisa ser desastre de carro, outra coisa não pode ser. já acontecera antes, uma derrapagem e um descuido. gostam de dirigir perigosamente. por isso só permito o corpo imaginar o ataúde de um automóvel. assisti a três filmes seguidos de noite. não me preocupei com o som, com o lanche às três da madrugada, com o banho demorado antes de dormir. também não me preocupava se o telefone tocasse. até queria ouvir uma ligação séria, solene, pesarosa. mas o que mais me deixava aflito não seria a confirmação do que eu suspeitava, era como fingir um espanto, uma tristeza, um qualquer coisa, sobretudo agora. não nos falávamos. e ainda assim, essa conexão de almas. talvez da minha apenas. eu. por isso não nos falávamos. o eu só se comunica com o tu quando existe outra pessoa. não nos falávamos havia mais de dois, três meses. é bem provável e possível que já estivessem mortos. é possível que eu esteja negando e seja tudo mentira: o carro, o acidente, os corpos esmagados. ouço um barulho na porta. acho que eles chegaram. de imediato sinto um cheiro de morte. é bem possível e provável que não saibam, que tudo tenha sido muito rápido. eu acho que os olho e os ouço, sem qualquer espanto. é bem possível e bem provável que seja espiritismo, que estejam de fato mortos. (fecho a porta e faço-me de morto em meu quarto).


.:marcio markendorf
imagem: five deaths eleven times in orange, andy warhol.
este conto faz apologia aos benefícios de morar sozinho.

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