7.09.2009

Capítulo 1 – De quando cavaleiro e escudeiro se revelam.

O asceta andante e sua companheira, a lebre.

Capítulo 1 – De quando cavaleiro e escudeiro se revelam.

_As máquinas dominam o mundo e os humanos são praticamente máquinas nesse mundo futuro. Em local incerto, talvez Taiwam ou Sergipe, encontra-se o único animal ainda vivo, um não ciborg. Não sabe, o pequeno, a terrível história que o aguarda.
_Chove. 84921a se preocupa com a demora de 500134x. Pela primeira vez em décadas, o segundo não faz a rota entre os módulos-cama da área de descarga de chips. O ser amado tem corpo alongado, mandíbulas externas sextavadas e longa crina de fiação inoxidável, inconfundível mesmo que a distância.
_O tédio é uma experiência nova para aquele que a tanto tempo espera. Se 84921a fosse capaz de construir memória estaria agora triste e sofrendo de ansiedade. Mas não, a massa que se sobressai no horizonte, o ser azul pálido praticamente sem órgãos externos, continua a focar o ponto invisível que definira como o primeiro pixel onde 500134x surgiriria no horizonte de micro-peças espelhadas de sol. Sinais claros de instabilidade: um braço ao lado do corpo e outro a repetir, a velocidade da luz, o movimento extático de segurar o pescoço pela primeira vez tenso. Não, os pés não se enterraram no chão, foi a areia de décadas que formaram uma nova camada sobre o solo onde 84921a se instalara, como uma maré de cascalho e silício sem previsão de baixa. Houvessem aranhas nessa época, ele teria 49.017 gerações nascidas e mortas entre seus braços pernas. Mas 84921a está livre de qualquer amarra.
_Sistemas democráticos, infecções, sonhos, saciedade ou fome, raiva ou a carente experiência da paixão, ele não as tem nem como bits em seus bancos de dados. Por outro lado, na efetividade de seus circuitos; é calafrio; é uma desilusão; é a perda da chance de amor; é falha no sistema; é reação a ataque eminente; o que finalmente desperta a programação ômega-trovão de 84921a.
_Um radar se ativa em algum lugar do hemisfério esquerdo do perímetro tronco-vertebral do sedutor e homoexógeno ser (assim consta em sua etiqueta de identificação). A 39, 55551 quilômetros é detectado um fraco sinal de parceiro compatível. Basta esse quase nada, essa ínfima possibilidade em torno do vazio, para 84921a traçar e iniciar sua nova rota de tocaia, abordagem e ataque.
_Ao iniciar o primeiro passo, acompanhado de rangido e sangue, grava-se em seu peito um novo rótulo que apenas no passado de referências perdidas. Apenas olhos anciões guardados em capsulas de sobrevivência saberiam ler: o asceta andante.
_A passada é lenta. Uma lebre ergue a cabeça a poucos centímetros do local de impacto do pé em suspensão do ser enamorado. Suas orelhas curvam-se sob o movimento curvilíneo de 84921a e apenas um rolamento rápido garante sobrevida a frágil bola de pêlos.
_A lebre junta os bracinhos ao corpo, ergue-se ao máximo contra a falta de vento, constante nesse mundo inóspito, e cheira algo. Seria uma estátua, não fosse o tremular compulsivo de seu focinho. Nas pegadas de 84921a fareja o abrir de futuros canteiros de plantas secas e frutos estéreis.
_Autômato em sua programação instintiva de cheirar por comida, o ser de longas orelhas morreria de imobilidade, não fosse o impulso de correr e acompanhar o movimento daquele outro ser, o quixotesco, o longo grafismo feito por melhoramento genético e órgãos bio-sintéticos, identificado no chassi como 84921a.
_Peso e contrapeso, pé de base e pé oposto, entre um e outro passo do Quixote futurista, a lebre traça uma dança improvisada entre as pernas robóticas do humano – sambista a seguir um carro alegórico. Sobre montes e montes de chips, olhos de vidro captam a harmonia perfeita da lebre e do desiludido 84921a, o asceta andante.
_O sol se põe. A imagem sobrevive em um mundo de linguagem onde toda forma de língua se perdeu. Um mamífero desaparece dos radares, último de sua espécie, sem nunca ter tido nome.

oberdan piantino
capítulo 1 da idéia de livro: O asceta andante e sua companheira, a lebre. Baseado no conto budista "O Asceta e a Lebre", no procedimento paródico de Cervantes em seu Don Quixote, e no gênero ficção científica.

3 comentários:

camila disse...

Nossa! Nem te reconheci! Adorei e vi todas as referências.

Júlia Rubra disse...

ADOREI!

Saudades de você..

marcio markendorf disse...

achei incrível o [dito] trabalho com o pastiche. ainda dá para ouvir sua voz - e continuar adivinhando tua dicção -, mas o enredo ganhou outros contornos que, acredito, serão muito promissores para tua literatura.