a guerrilheira escreve:
minha cor é negra como a dos homens e das mulheres deste lugar. não vejo problema em mim. tenho todo asseio necessário, me pinto, me visto bem e tenho uma cara bonita. de manhã, acordo com perfume fresco; à tarde, sou uma intelectual à paisana; à noite, uma dama à procura do amor. não sou predadora. tenho apenas um coração que pulsa. é injusto alimentá-lo? o pequeno tem fome, deseja, cabe na palma da mão. é um punho fechado. ele sonha com uma casa pintada, uma cama tranquila e um homem que me caiba. pedir muito sei que não é. desejo o que é pouco, o necessário para viver uma vida limpa e digna. caso contrário, seria uma ladra de feira, uma prostituta ou simplesmente uma ignorante. eu julgo entender do mundo. o que vejo, engulo e entendo. a única coisa que ignoro é o que dizem sentir duas pessoas de alma faiscante. minha metade cítrica só aparece nos sucos que bebo distraída, cheia de agonia e espera sem frescor. noite passada tive raiva: a mulher do terceiro andar, aquela feia, de um ou dois vestidos de noite apenas, chegou bêbada, dando risadinhas bobas e acompanhada de um homenzarrão que, por certo, dará tudo a ela. te acalma, te acalma, não voa pra cima dos dois! deixo de espiar pelo olho da porta e ouço as conversas e os tropeções desaparecendo escadaria acima. o espelho da sala me encara, tenho raiva. que metade sem face é dessa mulher que me olha de volta? por que a imagem não é inteira? não sou cega, paralítica, obesa, retardada, não sou feia nem favelada. tenho toda visão que deus me deu, duas pernas que me levam a qualquer lugar, uma silhueta esbelta, todo pensamento de quem inventa alguma coisa, a cara que disse e o dinheiro que me basta. o que me levar a pensar que, além dos homens que me deveriam cativar, há um excedente de pessoas que não me amam. não amam a mim, que tenho alguma coisa. quem amaria alguém que só vê o escuro, o saco de batatas na cadeira de rodas, a baleia do asfalto na última compra de doces? a cota de amantes dessas pessoas deveria ser transferida a alguém, a mim. por que não? por que não amam tudo o que sou, tudo o que estou a oferecer?
o espelho, inesperadamente, responde:
porque ninguém ama o que há de monstruoso por baixo de tua pele.
a mulher grita e a fantasia do ser humano se abre com um zíper. para lá da casca de pele, uma lagarta de fogo caminha no chão, derretendo o linóleo laranja como um rastro de bile que sobe a garganta.
o povoado, pois, libertou-se da maldição, e todos dormiram no último tiro de fuzil.imagem de rené magrite: "la philosophie dans le boudoir", 1947.
3 comentários:
que bacana! Pela primeira vez li um texto seu sem reconhecer de cara a sua voz, a sua "frase" (Estava achando que era da Priscila). Arrisco a dizer que experimentou novos recursos (parágrafos, narrador(a) com gênero definido e constante, descrições de espaço e não só relato de sentimentos). Arrisco a dizer que os experimentou por o sentimento que te fez escrever é diferente de tudo que sentiu até agora, como foi? como sente essa escrita, quais experiências mais curtiu fazer? Vamos combinar conversar sobre esse nosso trabalho de escrita-sublimação dos sentimentos, ok? texto bacana, com uma imagem bacana. Escolheu a imagem depois (como geralmente) ou foi antes, como acontece comigo? texto bacana, :]
estou inaugurando um território de experimentação de narradores, lugar de [pura] técnica. o sentimento que existe no texto é apenas efeito, fingimento, nada tem a ver comigo. quero tentar escrever a literatura no campo do negativo, do absurdo, do brutal, do cruel. e deixar a lavra semi-biográfica para as cartas de sempre. a imagem, verdade, veio depois, mas sabia desde o começo que seria de rené magritte.
quero acompanhar esse território, mas digo que ´pura técnica´ no final das contas a gente não consegue, a gente tenta e tenta rsrs. Na verdade vejo imagens da lavra semi-biográfica nesse terrtório brutal, algumas até que te desafiaria a deixar de lado. Mas na leitura, a diferença é grande e as imagens saem com uma som novo, ficou gostoso de ler. Legal, mete brasa.
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